
Aqui se llega por entre las viñas o,/saliendo desde Terra Alta, a través de los fayales/y de la laurisilva.
Urbano Bettencourt, Con Navajas Y Navios: Poesia Reunida Y Dos Ensayos 1972-2018.
Por certo que o poeta e escritor açoriano Urbano Bettencourt já foi traduzido noutras e longínquas línguas, mas esta edição em espanhol é diferente por várias razões. Esta outra tradução é muito especial, vinda de uma editora das Canárias e numa edição de Javier Hernández Fernández, a cuja literatura o poeta tem prestado sistemática atenção, assim como ao resto que se publicou durante várias décadas nos arquipélagos da Macaronésia. Trata-se de uma tradução que vem do seu livro seminal, como dizem outros leitores e apreciadores seus, Com Navalhas e Navios (Companhia das Ilhas, com prefácio de Carlos Bessa, 2019) adicionando um ou outro texto para maior esclarecimento dos leitores, novos ou mesmo que já conheciam a sua obra sem igual entre nós. Não vale a pena repetir aqui as suas temáticas, por vezes de terra queimada e abalada, simplesmente recordar que a poesia de Urbano dá, em primeiro lugar, primazia à nossa condição existencial, desde a guerra ultramarina em que participou na Guiné-Bissau às tribulações de termos sido portugueses dos Açores nos duros anos da nossa miséria, e de homens e mulheres que tudo combateram quotidianamente, nem sempre com feliz fim à vista. Voltemo-nos para as suas linguagens em qualquer língua. Simultaneamente clara e deliberadamente ambígua, irónica, dramática e por vezes cómica, ou pelos com um sorriso escondido dentro de si, as suas formas variam sempre consoante o que ele quer representar de modo nu e cru, levando o leitor a uma atenção precisa mas chegando sempre às suas próprias reacções. Não falo de conclusões, notem. A grande arte poética não tem respostas para nada. Indaga, questiona verdades tidas como definitivas, sublima o pior e, porventura, o melhor em nós mas nunca se impõe, nunca deseja levar o seu público para qualquer recanto de supostas “verdades” ou até “mentiras” do sistema, de um bairro ou grupo ou de todos em país em guerra constante consigo próprio. Como ler Urbano Bettencourt, como o leio eu? Com a mesma atenção que leio qualquer grande mestre da palavra nos idiomas que melhor conheço. Isso vai desde um T.S. Eliot ou o prosador que foi Raymond Carver, passando pelos mais perto de casa como Emanuel Jorge Botelho, Álamo Oliveira ou Renata Botelho, esta da nova geração que recupera as nossas palavras, as nossas ansiedades, dando conta do seu mais íntimo e assim dando de todos os outros que as lêem. Urbano Bettencourt é também, talvez depois de Pedro da Silveira, quem mais escritores das açorianas ilhas trouxe até nós. A grandeza da sua obra não está dependente desse facto e historicidade literária, só que nos incute directa ou indirectamente a autenticidade de sermos ilhéus e de nos tornarmos conscientes de que as ilhas são os pequenos universos humanos que mais mundo vêem, mais mundo recebem, mais mundo entendem na pequenez que se torna a chamada universalidade da nossa condição: desespero, raiva, felicidade e empatia perante todos os povos que estão no outro lado horizonte.
Se as palavras do prefácio do poeta Carlos Bessa são do maior interesse para um outro entendimento da obra de Urbano Bettencourt, tenho para mim que são conhecidas pela maioria dos leitores de Com Navalhas e Navios/Con Navajas Y Navíos. Admirador que sou dos dois, tenho agora neste espaço limitado de dar lugar a esta poesia brilhantemente traduzida, e creio não ser necessário citar esses originais.
Con Navajas Y Navios é iniciado com um “A Modo De Prólogo” de Javier Hernández Fernández, que conhece muito bem a literatura açoriana e de outras paragens semelhantes. É a ele que agora dou lugar, pois o seu ensaio toca em praticamente todos os pontos fulcrais e interpretativos da poesia aqui em foco. Por outro lado, não são assim tantos os que escrevem sobre nós fora no nosso arquipélago, que até no Continente português parece um quintal escondido onde apenas o famoso anti-ciclone está na consciência ou conhecimento desses nossos conterrâneos. Açores, Madeira, Cabo Verde e Ilhas Canárias parecem agora constituir uma geografia repartida sem nunca esquecerem as relações íntimas históricas ou tudo o resto que nos une num abraço perpétuo.
“… A la luz de tal definición – escreve Javier Hernández Fernández – creo haber satisfecho parcialmente lo que, por el hábito, se espera y, quizás, lo que um lector estánder, ese lector sumatoria y media de entre millones de lectores, esperan. Sucede, sin embargo, que ese lector no existe – todos somos lectores individuales – y que la tradición, essa vieja dama polvorienta, es una entidade dinámica que solo por nosotros es percibida como inamovible y perenne sombra de um siempre igual cementerio. Pero cambia continua y silenciosamente. Por ello, he intentado oferecerte, lector, un prólogo algo diferente en el que, por un lado, puedas ubicar al autor que prologa, al menos en unos mínimos geográficos, vitales (en lo posible y deseable) y literarios, haciéndome eco de lo que otros ya han dicho sobre su obra o parte de ella; y, por outro lado, aprovechar la ocasión para reivindicar las islas – la isla hecha de experiencia poética: Ysla – como território en el que el mito da paso a la razón, a la razón poética…”
Nem um Édouard Glissant, um outro grande teórico e escritor das literaturas arquipelágicas, o diria melhor, nem sequer na edição clássica também em língua inglesa que eu li há muitos (Glissant era de uma ilha caribenha francófona, e viveria em Paris onde escreveu sempre na língua do colonizador), Poetics of Relations, publicado em tradução pela University of Michigan, em 2000, ou então em Tout-monde, que saiu significativamente nas Éditions Gallimard, 1993. Equiparar Urbano Bettencourt ou colocá-lo entre todos os outros escritores sem quaisquer outras explicações, e muito menos justificações, ao lado destes e de outros grandes escritores, poetas e teóricos, não necessita mais palavras. Do poema “Hoy Día Antiguo”.
El dia antiguo de rasgarse el silencio
sobre el musgo breve de los navíos
la silueta pura de los navíos recortada
sobre la concha tranquila de las manos
el dia antiguo de despertar el rio vegetal
el rito secular del fuego derramándose por las orillas
en las orillas de las costumbres y de las voces
se consumen las velas y los viajes
se someten los troncos y las espigas después de la llama
y del vendaval
(del fuego decíamos
la única medida es que no hay medida para el fuego)
hoy apenas un clavel de cenizas
en la cubierta de los navíos que atraviesan el desierto.
Esperava nunca nada menos de Urbano Bettencourt que não viesse, pela milésima vez, demonstrar que nunca é a geografia que faz a grande literatura. É, precisamente, o contrário. É a grande literatura que nos torna conscientes desses territórios, na nossa rua ou no nosso bairro, e em geografias muito distantes para além dos nossos horizontes. Não gostam alguns de falar em literatura açoriana? Falem então na literatura do mundo, da qual a nossa, desde há muito, faz parte integral e na igualdade da palavra bem trabalhada, da palavra que, quando manipulada por um mestre, se torna em arte. Claro que o poeta aqui em destaque tem já uma numerosa obra, em todos os géneros. Quem desejar, pode investigadar de vários modos: nas bibliotecas ou aqui no mundo virtual. Que nem sempre acerta, já agora.
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Urbano Bettencourt, Con Navajas Y Navios: Poesia Reunida Y Dos Ensayos 1972-2018, Gobierno de Canarias, Edición Y Prólogo de Javier Hernández Fernández, 2021.
