Os Azorenos de San Carlos

 

É admirável constatar que os emigrantes nascidos nos Açores preservam apaixonadamente a sua identidade cultural no Ontário ou no Québec, na Califórnia ou na Nova Inglaterra, no Rio de Janeiro ou em São Paulo. 
E é impressionante perceber que os longínquos descendentes dos povoadores açorianos recuperam orgulhosamente a sua herança cultural em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul. 
Mas é (quase) inacreditável sentir que uma nova geração de uruguaios, remotamente originária dos descendentes de açorianos que atravessaram a fronteira do antigo Brasil para o atual Uruguai, assume empenhadamente a sua herança identitária como “Los Azorenos” da Casa dos Açores em San Carlos.
Localizado a sul do Brasil e partilhando o rio da Prata com a Argentina, o Uruguai foi descoberto por espanhóis, disputado por portugueses e ocupado por brasileiros até à sua independência em 1828. Com 3,5 milhões de habitantes (metade na capital Montevidéu) em 176 mil quilómetros quadrados, é o segundo menor país – mas um dos mais desenvolvidos economicamente – da América do Sul.
Territorialmente, o Uruguai está dividido em 19 departamentos governamentais. Um dos seis departamentos originalmente criados em 1816 é Maldonado, na costa sul do país, com 140 mil habitantes. Para além da capital homónima, o Departamento de Maldonado conta mais sete municípios, incluindo, especialmente, a cidade de Punta del Este, um dos mais afamados balneários sul-americanos, e a cidade de San Carlos.
San Carlos foi fundada em 1763, pelo general espanhol Pedro de Cevallos, com cerca de 300 famílias açorianas levadas de Rio Grande, no sul do Brasil, ironicamente para impedir o avanço português sobre terras do Uruguai. Os açorianos formataram e dominaram esta cidade até à chegada dos espanhóis das Astúrias e da Galiza a partir de 1780. A oito quilómetros da capital do departamento e a 14 do centro turístico de Punta del Este, San Carlos conta hoje 30 mil habitantes numa área de 1,4 quilómetros quadrados. 
A afirmação pública da sua origem açoriana, apesar de sempre prevalecer no subconsciente da arquitetura ou da cultura, ocorre sobretudo a partir da comemoração do seu bicentenário. 
Quando em 1963 se comemoram os 200 anos da fundação de San Carlos pelos casais açorianos provenientes do Brasil, foi criado o Grupo de Danças Folclóricas Uruguaias “Los Azorenos”, especialmente composto por estudantes do magistério. Um dos seus principais impulsionadores, o professor Ariel Edison Guadalupe Cabrera (1942-2010), tanto se dedicou a dinamizar o grupo crescente e a pesquisar a cultura inerente que conseguiu constituir, em 2002, uma associação cívica igualmente denominada “Los Azorenos”.
Meio século depois de constituído o grupo de danças e uma década passada sobre a sua transformação em associação, “Los Azorenos” dão lugar à Casa dos Açores do Uruguai, oficialmente reconhecida pelo governo uruguaio em 2013, que integra o Conselho Mundial das Casas dos Açores desde 2011.
A sua presidente nos últimos anos, e atual Conselheira da Diáspora Açoriana pelo Uruguai, é Gladys Alícia Quintana Díaz. Descende em nono grau dos primeiros açorianos que povoaram a cidade e tem isso comprovado no livro “Los Islenos – Genealogia de famílias de San Carlos de origen azoriano”, da sua co-autoria, editado pela própria Casa dos Açores.
Chega a ser emocionante assistir a um ensaio do grupo folclórico da Casa dos Açores do Uruguai, com crianças, adolescentes e jovens cantando e dançando, com pronúncia espanhola em trajes açorianos, o Balho Furado ou o Mané Chiné. “A dança mais popular é a Chamarrita, uma mistura da dança açoriana com as danças Criollas do folclore uruguaio”, simbolizando, afinal, o próprio cruzamento cultural destes jovens de San Carlos que descendem – longe no tempo e perto no coração – dos primeiros povoadores açorianos.
A duas horas rodoviárias da capital uruguaia e a três da fronteira brasileira, a cidade de San Carlos é um símbolo resistente do povoamento açoriano na América do Sul, a par do litoral catarinense e gaúcho. Passados mais de dois séculos e meio, as marcas materiais dessa herança cultural são visíveis ou deduzíveis.
Há mesmo vários antigos Presidentes do Uruguai com assumida ascendência açoriana, como Júlio Maria Sanguinetti (1985/90), que foi o primeiro do pós-ditadura, Luís Alberto Lacalle (1990/95) e José Mujica (2010/15), este descendente da família açoriana Terra. A estes três, atuais senadores, junta-se ainda o presidente interino Manuel Bustamante Piris (1855/56), descendente da família Pires, oriunda da ilha do Pico.
Desvanecem-se todas as dúvidas quando se chega à “Plaza Islas Azores” – uma ampla praça pública, especialmente vocacionada para a prática desportiva da juventude local – que foi inaugurada em 2008, na 7ª festa açoriano-carolina, por obra do Município de San Carlos e por graça da Casa dos Açores. A sua placa toponímica, em azulejos artesanais de azul e branco, exibe a representação iconográfica das nove ilhas açorianas. E uma outra faz a síntese do reconhecimento municipal: “Azorianos Fundadores, 1763 – Aqui termino el viajo y empezo la historia”.

 

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Diretor Regional das Comunidades no Governo da Região Autónoma dos Açores. Baseado num texto do seu livro Transatlântico II – Açorianidade & Interculturalidade (2024)