Estórias da Ilha das Flores

 

Numa ilha em que a taxa de mortalidade ultrapassa a de natalidade e em que o seu futuro se projeta em horizontes imprevisíveis, Carlos Fagundes salvaguarda muitas das suas tradições e história com a publicação de livro da sua autoria, recentemente publicado, sob o título Entre o Mar e a Rocha. Estórias.
Ao todo, são 42 estórias de temática diversificada, mas que no seu conjunto expressam aspetos culturais de diferentes épocas, alguns observados, outros ouvidos, in loco, pelo autor, nas décadas dos anos cinquenta e sessenta, e primariamente circunscritos à freguesia da sua naturalidade.
Carlos Fagundes nasceu na Fajã Grande, Ilha das Flores, no ano de 1946. Aí, fez a instrução primária, após a qual seguiu para o Seminário de Angra, onde completou o curso de Teologia. Mais tarde, licenciou-se em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, seguindo-se a Profissionalização em Exercício nas disciplinas de Português e História de Portugal. Lecionou nos Açores e em várias escolas do Continente. 
Não se trata de mais um livro acerca das Flores, mas de uma referência credível, à qual Onésimo Teotónio Almeida, em palavras de prefácio, alude nos seguintes termos: “… há uma marca de veracidade nestas páginas que a designação <<estórias>> (escamotearia). São páginas por vezes duras, tal a nudez da sua autenticidade e realismo. Plenas de vigor e garra, não deixam o leitor indiferente”. Pg.9
O autor septuagenário começa por remontar às lembranças de menino e moço do seu lar, recordando-se de ver a avó deitada numa cama de musgo e casca de milho, numa casa onde a mobília de luxo consistia “duma cómoda, duas caixas e meia dúzia de cadeiras desengonçadas”, pg. 14. Pelas frestas do soalho da cozinha “ entrava um ar tépido, misturado com bafio de animais e cheiro a estrume e arrumos”, pg. 15. A ceia frequentemente consistia de “leite fervido, pão de milho estufado, rijo, envelhecido e bolorento, cozido há oito dias”, pg. 14. A celebração da Noite de Natal era simples. A família sentava-se ao redor da mesa, comendo figos passados com pão.
O menino Carlos que costumava fazer recados para o senhor padre, sendo remunerado com “uma fatia de pão de trigo fresquinho, coberta com doce de pêssego”, pg. 24, havia observado a abundância que havia em casa do Sr. Reverendo: “ galinhas depenadas, carnes de porco e de vaca, massa sovada, bolos, pudins, frutas e muitas outras iguarias que faziam crescer água na boca”, pg. 24.
Na instrução primária, Carlos evidenciou-se como o melhor aluno da classe, mas vivia constantemente sob a ameaça de reguadas e puxões de orelhas. O seu Caderno Diário era o mais sujo da classe e a professora, a Dona Alzira, não compreendia que ele fazia os seus deveres escolares à mesa duma cozinha mal iluminada onde se espalhavam “ miolos de pão, restos de comida, pingos de café, de leite e até de graxa”, pg. 46.
A vida do campo era dura. Parafraseando o autor: sachava-se milho, ceifava-se erva, carregavam-se cestos de batatas ou à cabeça ou às costas, agarrava-se a rabiça do arado, mondava-se, quebrava-se espiga ao milho, rachava-se lenha, ordenhavam-se vacas, tirava-se-lhes o estrume e levavam-nas ao pasto. Passavam-se horas infindas a espantar os tentilhões para que não comessem a seara.
O destino-América era o único marco de esperança que se via na infinidade do horizonte. “A América sim! Aquilo é que é uma terra, uma terra para se viver à farta.” Pg.158. Maria, vamos para a América”, pg. 159. Os que vão voltam podres de ricos! São recebidos festivamente ao regressar de visita à terra natal. Pagam promessas ao Divino Espírito Santo. A família prepara-se para a chegada: “Caiou-se a casa, deu-se um arranjo na retrete, compraram-se pratos e tigelas novas, mandou-se fazer uma selha de madeira para os banhos e uma cadeira de vimes para a sala”. Pg. 103. Além disso, “havia que cobrir inhames, plantar mais uma belga de batatas-doces, pôr galinhas a chocar, engordar um porco, criar um gueixo…”,pg.186.
Numa freguesia pequena e numa ilha onde o isolamento pesa, a ida para a América e para a tropa deixavam sempre um rasto de saudade.
A vinda do Bispo, para a administração do Crisma, era um acontecimento que causava alvoroço na freguesia com uma prepação a vários níveis: o arranjo da casa, o atapetar das ruas, a presença da filarmónica, o estalar de foguetes no ar, e um avolumado número de confissões nos confessionários da Igreja
As Rogações eram uma prática religiosa na qual se percorriam as ruas, em procissão, implorando a intervenção divina para que se acabassem as secas.
Na vida religiosa daquela época, os indultos e Bulas do Santo Padre eram anunciadas do alto do púlpito – o cristão ficaria dispensado de comer carne às sextas-feiras, exceto na Quaresma, se comprasse aqueles “papéis”. Porque em casa de Maria não havia nem dinheiro nem carne, teve que se poupar no petróleo, no café, e no leite. 
Aterrador e intimidante era a ameaça punitiva do Boiceiro que se parecia com um assento de cadeira, cravejado de pregos enormes e aguçados, que se destinava a castigar os meninos desobedientes e não cumpridores dos Mandamentos da Lei de Deus e dos preceitos da Igreja.
A austeridade religiosa daqueles tempos e lugar terá contribuído para que a cunhada mais velha de uma noiva se insurgisse contra a costureira pelo talhe que esta pretendia dar à camisa de dormir da noite de núpcias (o Naitigão) que, segundo a costureira, “havia de ser de tule, de um tule discreto, de cor creme, um pouco transparente e havia de ser curto… por meia perna e cavado … sem mangas”, pg.106. A cunhada objetou: “que aquilo era uma grandessíssima pouca vergonha”, pg.106.
A tosquia das ovelhas, nos meses de Março e Setembro, era outra tradição conhecida pelo dia do Fio. Era tarefa que se prolongava pela noite dentro. Os uivos dos cães agrupavam as ovelhas bravas. “As mulheres enchiam cabazes e cestos de vimes brancos … com pratos e tigelas a que sobrepunham pratos de peixe frito, torresmos e toros de linguiça, talhadas de inhames, quartos de bolo do tijolo, fatias de pão de milho, pedaços de queijo, um bule cheio de café com leite, algumas maçãs e as tesouras de tosquiar.” Pg. 208. Mais tarde, faziam-se serões a cardar e a fiar a lã que se utilizaria para a confeção de mantas, cobertores, casacos, sueras, e peúgas. 
Acabo de mencionar apenas algumas das estórias do autor de Entre O Mar e a Rocha. Estórias, mas, através da leitura do livro, há simples palavras e frases que invocam o viver de uma outra era que as camadas mais novas já desconhecem. Vejam-se algumas: A chegada do Carvalho; o andar de pé descalço; a casa do padre ser das únicas na freguesia com quarto de banho; cozinhas em que os armários eram caixotes; balde do porco, na cozinha, com restos de comida e lavagens para sua alimentação; carro de bois como meio de transporte dos produtos agrícolas; as lavadeiras nas ribeiras: o uso da salgadeira para preservar a carne e o peixe; o cozer o pão de milho, para a semana, às sextas-feiras; o lavar dos pés, à noite, numa família numerosa, tornava-se complicado; o bater das Trindades; o respeito de tirar o chapéu ao passar em frente da Igreja; a profissão de cesteiro; o trabalho do carteiro e a alegria que era receber um aviso amarelo para se levantar uma encomenda da América; o recolher do sargaço; a iluminação nas casas com lâmpadas de petróleo ou petromax. A lista poderia continuar.
Alguém disse que as Flores é ilha onde a natureza se excedeu em beleza. Parafraseando o autor, é nesse palco que se tecem namoros ocultos ora entre as faias e os incensos, ora junto às altas paredes de terra de pasto.
A Praça, na freguesia, era como que uma instituição, onde “muitos homens se sentavam, descansando, falquejando, tagarelando, fazendo comentários, gozando e até mesmo injuriando, difamando, e metendo-se na vida alheia’. Pg. 72.
Nas páginas de Entre o Mar e a Rocha. Estórias, o autor mostra um minucioso conhecimento da topografia da Ilha nas suas ravinas, lagoas, montes, e vales. Não se esqueceu também das diferentes fases da vida agrícola, das sementeiras, e criação de gado. O autor florentino é ouvido atento à voz do povo nos seus naufrágios, aventuras, sofrimentos, lendas, tradições, e superstições. Lembra que a gente da sua Ilha é hospitaleira e amiga de todo o visitante.
Carlos Fagundes, mestre da palavra escrita, que mereceu prémio nos Jogos Florais das Festas da Cidade de Angra do Heroísmo, deixa para a posteridade um registo de estórias, que também são história, da sua Fajã Grande e da sua Ilha – as Flores.

Não posso deixar de mencionar o fato de Carlos Fagundes ser mais um dos muitos escritores que o Seminário de Angra formou nas décadas dos anos cinquenta e sessenta. Pensadores, historiadores, escritores, e jornalistas, saídos dessa instituição, encontram-se espalhados por este mundo fora enriquecendo o seu espólio literário com verbo da sua sabedoria.