Os Rapazes da Rua (6)

 

Qualquer coisa com pontas maliciosas para fugir da rotina podia surgir com um simples indivíduo. Mas nada melhor do que uma partilha de dois ou três. Com quatro já seria um pouco arriscada, mas às vezes a companhia de cinco, ou mais, paria surpresas divertidas e cheias de graça. 
Quantas vezes o João foi fazer mandados e nunca deu conta dos recados? É que, passando por este ou por aquele lugar encontrava situações que o convidada a entrar. Nelas se metia, esquecendo os seus deveres, sabendo perfeitamente que era bem merecida uma sova, aceitando-a com a maior naturalidade.
Pobre José Luís, com a perna quebrada, sentado no chão, no passeio, que uma pessoa de moderadas dimensões ocuparia por completo, de costas apoiadas na parede da sua casa, e o membro vestido de gesso por cima da valeta. A certa altura passaram três amigos da onça, de onde se destacou o Francisco das Ovelhas, que não pensou duas vezes antes de pular em cima da perna partida. 
A gritaria dolorosa e choradeira foi tão alta que se ouviu na Rua da Ribeira. Depois vieram as línguas das tias, dizendo pragas que misericórdia. Mas os três coriscos já estavam bem longe, e não deixaram rasto.
O osso voltou a quebrar no mesmo sítio. Rapaz para o hospital.
Depois, já se sabe, tiveram um ajuste de contas, que segundo se sabe, dificuldade de pagar não houve. O hospital era da Santa Casa da Misericórdia e o Governo era de Marcelo Caetano, herdado de Oliveira Salazar. Rapazes!... O diabo nunca quis nada com eles. Estão mal um dia; no outro, são grandes amigos.
Dias depois o José Luís arranjou umas muletas, para andar por aqui e por ali, conseguindo meter-se com certas companhias, incluindo a do Francisco das Ovelhas, que lhe tinha quebrado a perna, em algumas caminhadas de rua. Aventuras de ribeira ou de mar, nada. Muito menos apanhadas, escondidas, pula-paredes, e as outras demais brincadeiras que faziam um menino ser um rapaz da rua. Mas podia ir com este, ou com aquele, para se distrair, mantendo, assim, a perna fora da valeta, e do perigo que representava no desejo de alguém lhe querer pular em cima.
Num daqueles dias, enquanto acompanhava o Francisco e o Gonçalo, andando lentamente, o diabo do Francisco teve a ideia de bater numa porta, de ris, e fugir. Já se sabe que o Gonçalo também desatou a correr, ficando José Luís à rasca, andando de muletas o mais rápido que podia, que nunca passou de: vinte e nove, trinta; vinte e nove, trinta…  
Depois desta cena veio o gozo dos rapazes quando viam o José Luís:

Vinte e nove, trinta; vinte e nove, trinta.
Hoje é quarta, amanhã é quinta!
Vinte e nove, trinta; vinte e nove, trinta.
Abaixa a mão e guerra na pinta!

No outro dia tivemos oportunidade de assistir à passagem de uma procissão, que nos fez saltar da memória  recordações da infância e da juventude. E veio mesmo a calhar ter presenciado a saída do cortejo de um músico apressado, à procura de uma parte para urinar.
Era frequente ver isso nas Ilhas. Na América, pelo menos nos últimos quarenta anos, nunca presenciámos idêntica situação. Mas isso não vem ao caso, porque esta lembrança levou-nos ao fundo das memórias, recordando as famosas mijadelas que se dava da Ponte dos Oito Arcos para o Vale do Paraíso, muitas vezes fazendo competição entre os rapazes, para ver qual era o repuxo que ia mais longe.
Num dia de vento era necessário escolher o lado da ponte para realizar tais façanhas, porque se a corrente de ar não fosse favorável o jato seria mais curto, e se soprasse em direção contrária haveria de nos prejudicar.
Uma vez tivemos o privilégio de participar num batismo de roupa lavada, exposta a secar em cima de pequenos arbustos. As lavadeiras de ribeira tinham uma técnica formidável em estender a roupa lavada, presa nas silvas.
Naquele dia, estando expostos três lençóis brancos aos banhos de sol, na ponte passaram três malvados, e fizeram questão de gravar neles as suas assinaturas. Ainda hoje estamos por saber como a letra A foi tão bem escrita! Esta coisa dos Açores serem um arquipélago de escritores, como alguém diz, não é nada novo. É que, naquele tempo, nas escolas escrevia-se com lápis de pedra, lápis de papel, giz e caneta de pena (a esferográfica foi mais tarde), e nas ruas até se escrevia com a pomba!
Este assunto de mijadelas em partes públicas tem muito que se lhe diga, e decerto haverá muita gente que de chichi faz estórias para contar. Porém, não deixa de ser curioso o facto de invadir-nos o sentimento de superioridade quando se mija em cima de alguém, ou em cima de pertenças alheias. Aquela ponte dos oito arcos era propícia para estas façanhas. Coisas de rapazes. Rapazes da Rua!
Concluímos as mijadelas de ruas e pontes, recordando que bem novos os rapazes da rua aprendiam a mijar contra a parede. Uma herança cultural de cães e pessoas, praticada pelos bêbados com suas respetivas cadelas. As paredes de um mau vizinho quase sempre atraiam estas descargas, e outras ainda piores.
Com o tempo contado fazia-se chichi andando, criando arte no solo e nas paredes, com letras e desenhos. Há também quem chame os Açores de Arquipélago de Artistas. E nas fontes públicas, quando funcionavam, experimentava-se a falsa sensação de sentir o líquido percorrer o corpo sem nele ficar retido. Ou seja: tanto entrava, como saía. Bebia-se e mijava-se ao mesmo tempo.
Também era costume da rapaziada meter toda a gente a urinar sem vontade. Bastava um apertado dizer: ”Quem não mija é corno”, e logo, os outros tanta força faziam para deixar sair uma pinguinha, porque nenhum rapaz queria ser corno. Para um rapaz, esta coisa de ser corno teria o mesmo significado de “paneleirim”.
Já, agora, e para terminar (juramos que vamos terminar), regista-se aqui um célebre chichi, feito à luz do dia, de cima do pedestal da estátua de Gaspar Frutuoso, que se encontra nos nossos dias no Largo da Cascata (ou de Gaspar Frutuoso), em frente à igreja Matriz:
Decorria o ano de 1978, e a estátua do pai da história açoriana já dava polémica antes de ser inaugurada. Base montada no topo da primeira escada da Matriz. Protestos contra a localização. Uns queriam mais ao lado, outros mais acima, alguns mais abaixo, nada se resolvia, e a estátua nunca era lá colocada. Costumes da terra, infelizmente.
Num certo dia, um rapazinho subiu ao pedestal, fez-se de estátua, e urinou em público. Quando a polícia chegou ao local já estava o rapaz aliviado e bem longe daquele sítio.
Convém lembrar que esta estátua, pelas nossas contas e memórias já conheceu três assentos: o primeiro, no referido local, em cima da primeira escada; o segundo, praticamente nas traseiras da igreja, virada para a Rua Prior Evaristo Carreiro Gouveia, encostada ao jardim do adro, onde costumávamos namorar, em 1982; e o terceiro é aquele onde atualmente se encontra. Por aquilo que se ouve, de gente que só se queixa, Gaspar Frutuoso ainda incomoda alguns com a sua presença, ali, perto da igreja, da qual foi o seu sétimo vigário.
Por falar nisso, existem aqui dois paralelos significativos, protegendo o majestoso templo, reinando neles o número sete: Gaspar Frutuoso, sétimo vigário; Evaristo Carreiro Gouveia, sétimo prior. Ambos perpetuamente lembrados com estátuas, ruas e um largo.
Em caso de termos despertado curiosidades, informa-se que se nos perguntarem quantas escadas tem a frente da igreja de Nossa Senhora da Estrela, a nossa resposta será: cinco.
Sabemos perfeitamente que esta não era a resposta desejada. Talvez assim seja melhor: um total de trinta e seis degraus, divididos por cinco escadas.
Por hoje é tudo. Muito mais há a acrescentar às memórias dos Rapazes da Rua, mas chegámos ao ponto de virar a página para não enfadar ninguém. Além disso, para terminar esta série, como tudo tem um fim, a rua também teve o seu. Na vida dos rapazes.
No nosso caso, com o avanço da idade, lentamente fomos transitando da rua para a praça, arranjando novos amigos, sem nunca ignorar os velhos. Antes pelo contrário: os velhos sempre se mantiveram unidos. Os novos só equilibraram o grupo, porque muitos dos antigos emigraram, na sua maioria para o Canadá.
Os Rapazes da Praça tinham mais conhecimentos, e outras formas de ver o mundo como ele é.
O nosso orgulho é o fato deste novo grupo ter sido (e ainda é) amante da natureza. Dele saíram passeios de exploração a vários recantos da Ilha, e expedições a grutas e algares. Até chegou a fabricar explosivos para alargar uma estreita passagem subterrânea, mesmo ainda nos tempos quentes da frente de libertação açoriana. Auto-didata por natureza e determinado por vontade.
O grupo teve o seu primeiro acampamento na Luz Velha – a antiga central elétrica do Salto do Cabrito, da qual já nem existem ruínas nem vestígios, em 1977. Foi ele que mais força e colaboração deu para a fundação do Agrupamento 645 do Corpo Nacional de Escutas da Ribeira Grande, em 1980.
Por tudo isso e muito mais, aqui prestamos uma sincera homenagem aos Rapazes da Rua de sessentas e setentas, que souberam viver o seu tempo, sem o stress e todos os outros males que nos nossos dias afligem a juventude.

A rua era uma escola
Que além de brincar à bola
Tantas coisas se aprendia.
Até os nossos brinquedos,
Feitos pelos nossos dedos
Nos davam tanta alegria.

Rapazes da minha rua,
Tal como foram à lua,
Registámos na memória.
Mostrámos à nossa gente
Que somos geração valente
Escrevendo a nossa história.