Ribeira Grande: a Capital do Norte – IV

 


Como poderei fundamentar – no mínimo, de forma razoável -, a comparação do nível de ‘desenvolvimento material’ da Vila Ribeira Grande com o de Vila Franca e o das três cidades dos Açores se os (raros) estudos que conheço diluem a realidade Concelhia na totalidade do Distrito? Como resolver o dilema? A solução passaria pelo estudo sistemático dos arquivos dos Governos Civis, das Juntas Gerais, das Câmaras e das Administrações dos Concelhos. Claro, e de ‘bater’ os periódicos da época. Perante tão colossal tarefa, optei por fazer sondagens (cirúrgicas). E do que daí extraí, proponho os palpites e as probabilidades que se seguem. Espero bem ter conseguido uma amostragem representativa.
Explicada a minha opção de pesquisa, volto-me para o que descobri sobre o ‘Desenvolvimento Material’ da proposta de 16 de Junho de 1852. Os responsáveis autárquicos da Ribeira Grande, elegiam o porto de Santa Iria como a grande prioridade. O que hoje se designaria por projecto ‘âncora.’ Na sua intenção, esta estrutura portuária iria ‘acelerar’ a economia da Ribeira Grande e a de toda a costa norte. Os portos sempre foram ‘motores de desenvolvimento.’ Tratava-se de algo que remontava ao século XVI. A este propósito, próximos da proposta de elevação a cidade, chamo a atenção para uma acta de 1850 da Câmara da Ribeira Grande e um artigo publicado na Revista Micaelense, de Ponta Delgada. Diogo Tavares do Canto Taveira fora nomeado Presidente de uma Comissão Central ‘encarregada de solicitar os donativos e dirigir os trabalhos da obra do cais no Porto de Santa Iria.’ À altura, decorriam já trabalhos sob a orientação de Francisco Maria Montana, capitão de engenharia. Nesse sentido, Diogo do Canto solicitara à Câmara, ‘instrumentos como são picaretas, barra, e malhos e os mais objectos que forem precisos,’ A bem dizer, ‘a primeira pedra no alicerce do cais da Vila da Ribeira Grande’ fora lançada sete dias antes, a 12 de Junho. Daí resultaria a construção de ‘uma porção de paredão.’ A escassos três meses da proposta de elevação da Ribeira Grande a cidade, no dia 11 de Março de 1852, saía, na Revista Micaelense, de Ponta Delgada, uma carta aberta dirigida ao Governador Civil: Félix Borges de Medeiros. O autor identificava-se apenas como: ‘SOU SR. REDACTOR SEU assinante.’ Quem seria? Alguém da Câmara da Ribeira Grande? António Júlio de Melo? Pouco depois, já como autarca, iria defender abertamente o porto. João Albino Peixoto? Escrevia em diversos jornais de Ponta Delgada, e dali a nada viria a ser o grande defensor de Santa Iria e da elevação a cidade? Chegaria a ser o responsável pela Alfândega de Santa Iria (extensão da de Ponta Delgada). Fosse quem fosse, a carta fala por si. É um pedido de apoio financeiro ao Governador para custear diversas obras de acesso àquele porto. Sendo crucial convencer o Governador (a quem a carta se dirigia) bem como os leitores da Revista, o autor enumera (de forma genérica) benefícios que resultariam da obra: ‘vantagens incalculáveis’ e de ‘alta transcendência para o bem público, agricultura e comércio de S. Miguel.’ E de assinalável importância, para os ‘negociantes e proprietários de São Miguel, muito particularmente os que vivem no Norte da Ilha.’ Defendendo a ‘transcendência e as vantagens’ do projecto,’ o autor explica as suas razões: ‘oferece uma vasta baía,’ que podia ‘conter doze a quinze navios, que no verão podem estar amarrados à espia, tendo-lhes a natureza fornecido lugares próprios para amarração, bem como o seu cais de boa pedra, no qual pode carregar-se à prancha, a uma milha de longitude fica-lhe um óptimo ancoradouro em fundo de areia com trinta braças de fundo.’ Mais ainda, era ‘o único porto de salvação para os navios das ilhas de baixo corridos no canal com ventos de Oeste e Noroeste,’ por ser ‘abrigado a todos os ventos excepto o Nordeste forte,’ nesse caso, a alternativa era ‘ancorar em Ponta Delgada.’ No entanto, a Ribeira Grande podia também socorrer Ponta Delgada, porque ‘todos os anos há levantes do ancoradouro de Ponta Delgada, que são mais ou menos frequentes segundo os ventos reinantes, alguns têm durado 20 a 30 dias, quando se dão estes casos, arruínam-se as frutas nos armazéns, o que prejudica os Negociantes.’ O que faltava de imediato a Santa Iria? ‘(um) caminho, que conduza ao cais, para com comodidade se fazer o transporte das diversas cargas,’ ainda assim, concluía, ‘esta dificuldade acha-se em parte vencida para o que se construiu, com toda a segurança, uma porção de paredão (a do maior custo e trabalho) no que se tem gasto 1$600 reis, sendo orçado o resto do caminho em 1$000 reis.’ Por esta altura, já vindo de há muito, Ponta Delgada pressionava os poderes para melhorar o seu porto. É bem possível que o mesmo sucedesse com Vila Franca. 
Sendo a Vila da Ribeira Grande cabeça de uma comarca, da qual faziam parte os três concelhos da Costa Norte (daí o título deste artigo: Capital do Norte) - Capelas, Ribeira Grande e Nordeste -, além de boas vias terrestres, necessitava de uma porta de entrada e de saída marítima capaz. Tentava-se manter a interdependência inicial (económica e politica) entre a costa Norte e a do Sul, agora ameaçada pelas directivas dos governos liberais, resultando daí uma maior concentração do poder administrativo - seguido naturalmente pelo económico, na cidade de Ponta Delgada. Tendo em consideração unicamente o Concelho da Ribeira Grande (em 1852 ia das Calhetas à Maia), reclamava-se (sem haver contestação) que a sua economia era a segunda da Ilha. Porém, tal como no resto da Ilha, grande parte da terra, ainda se mantinha vinculada (em morgadios e capelas). A piorar a situação, parte dessa terra vinculada e da restante não vinculada, encontrava-se nas mãos de proprietários de fora da Ribeira Grande. Daqui se depreende que, a economia da Vila da Ribeira Grande e a dos outros dois concelhos da Comarca, essencialmente agrária, tal como na restante ilha, era dominada por ‘senhores’ de fora, residentes em Ponta Delgada (micaelenses e ingleses – no caso do comércio da laranja) ou no continente. Os moinhos da Ribeira Grande estavam igualmente nas mãos de senhores de fora. Eram os melhores da Ilha e dos Açores. Como caracterizar a relação entre esses ‘senhores’ e a Comarca da Ribeira Grande? Estaremos perante uma espécie de economia colonial? Em que parte (substancial) do lucro que os moinhos, as terras, as matas e as quintas geravam não era investido na terra onde havia sido gerado? Tirando casas de veraneio e granjas e pouco mais, o grosso do lucro era investido em comodidades na cidade de Ponta Delgada ou algures no continente. É anacrónico pensar assim? Que acham?
Deixando Santa Iria e as mais considerações ‘coloniais,’ vamos à laranja? Apesar de alguns sinais alarmantes, vivia-se em plena época áurea da laranja. A economia em torno da cultura e do comércio da laranja originava grandes ganhos aos ‘senhores.’ Pelo contrário, pouco ou nada chegava à maioria da população. Não tardaria mais um ciclo de emigração. À altura, os comerciantes estrangeiros, sobretudo britânicos, eram os maiores beneficiários do seu comércio. Sem discriminar os concelhos produtores, o ‘Almanak Rural dos Açores,’ publicado pela Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense (SPAM), referindo-se ao ‘Termo médio do valor anual dos géneros exportados para diversos países do porto de Ponta Delgada,’ de ‘1840 a 1849 inclusive,’ destaca a laranja. Muito acima do valor dos cereais (206.934$ de cereais para 387.720$ de laranja) e muitíssimo mais do valor de ‘outros produtos da agricultura’ (principalmente Batatas, carne, manteiga, queijo, couros e peles) e de ‘outros objectos’ (principalmente doce, flores artificiais, pano de linho e pedra lavrada).  O ‘termo médio de 1846 a 1850,’ com ligeiras diferenças, confirma-o no essencial. ‘Laranja e limão’ obtiveram 349.898 para os 227.461 obtidos pelos ‘cereais e farinha.’ Isso é para o Distrito. Onde encontrar indicadores para a laranja produzida no Concelho da Ribeira Grande? Um relatório de 1860 do Governador-Civil Félix Borges de Medeiros coloca a Ribeira Grande em terceiro lugar: 1.º Ponta Delgada, com 111.897 milheiros; 2.º Lagoa, com 60.000 milheiros; e 3.º Ribeira Grande, com 50.000 milheiros. As quintas de laranja do Concelho, distribuíam-se por um arco (imaginário, claro) que partia a Nascente, do Pico da Pedra, passava pelas Areias, de Rabo de Peixe - que detinha a fama de produzir a melhor laranja da Ilha -, continuava pela Ribeira Seca e terminava na Ribeirinha. Vila Franca, com 9.669 milheiros, ficava-lhe muito atrás. A produção dos três maiores equivalia a 95,8% da produção de laranja da Ilha de São Miguel. 
E comparando a exportação de laranja dos três Distritos? Entre 1851 e 1856, com 1.625.008, São Miguel exportava mais do dobro de Angra (264.476) e ainda mais da Horta (50.744). E a Ribeira Grande? Sem prova para responder à pergunta, não tenho remédio senão entrar no reino e se fosse? E se, em 1860, os 44% de produção de laranja da Ribeira Grande (em relação à produzida em Ponta Delgada) pudessem equivaler a 44% de exportação? A produção destinava-se à exportação. Então, se o Distrito de Ponta Delgada (como vimos) exportava mais do dobro do de Angra e muito mais ainda do da Horta, esses tais 44%, que atribuímos (por palpite) à Ribeira Grande, indicariam o quê? Se a produção/exportação de laranja dos Concelhos da Horta e de Angra (isolados dos seus Distritos), fosse menor do que a totalidade dos seus distritos (como parece óbvio), então, será possível dizer-se que a produção e exportação da Ribeira Grande não seria inferior podendo ser igual ou até superior à daqueles Concelhos? Pode-se. Quanto a Ponta Delgada e a Vila Franca? Já o dissemos. 
Continuando a referir apenas as principais produções, como vêm nas listas da Alfândega, além da laranja, havia trigo e milho. Em 1852-52, o Distrito de Ponta Delgada produziu 55.982, 26 hectolitros de trigo e 235.394,18 hectolitros de milho.

 De novo a pergunta: quanto desse trigo e milho foi produzido na Ribeira Grande? Sem ter ido a fundo aos arquivos, só posso dizer que descobri alguns indícios (não quantitativos). Numa entrada de Julho de 1839, os irmãos Bullar registaram no seu diário que depois de subirem a Ladeira da Velha e antes de chegarem à Ribeirinha, haviam atravessado campos de milho e de trigo. No entanto, isso sabe-se, a área de cultivo daqueles cereais estendia-se, muito além da Ribeirinha. Em Março de 1857, José Maria da Câmara de Vasconcelos, relator de um estudo da ‘Sociedade Promotora dos melhoramentos [da Ribeira Grande],’ que fora criada no ano anterior, referindo-se (além de outros produtos) à laranja, ao milho e ao trigo, afirmava que ‘os terrenos deste Concelho são dos que mais se prestam a este aumento de produção, não só em as proximidades da Vila, mas, mais ainda, nas vizinhanças dos lugares de leste.’ Em Agosto de 1858, o Prior Manuel Cabral de Melo, frade franciscano egresso, natural da Ribeira Grande, que chegara à Matriz em Setembro de 1856, (a Matriz que incluía ainda a Ribeirinha), ao responder a um inquérito nacional sobre a sua freguesia, talvez por ordem de importância, assinala as culturas principais da freguesia: ‘São ao presente, o trigo, o milho, a fava, o feijão, e a laranja.’ 
De regresso aos cereais, conheço ‘apenas’ a relação entre Distritos. Assim: Angra, de 1850 a 1852, em média, produziu 69.389,04 hectolitros de trigo e 134.130,36 hectolitros de milho. Portanto, Angra (ou seja: Angra, Praia, Graciosa e São Jorge) produziu mais trigo e menos milho do que o Distrito de Ponta Delgada. A Horta (ou seja Faial, Pico, Flores e Corvo), para o período de 1850 a 1858, produziu 17.745, 19 hectolitros de trigo e 62.432, 05 de milho. Portanto, os valores da Horta ficam muito aquém dos do Distrito de Ponta Delgada. Que lugar ocuparia a Ribeira Grande no confronto com os Concelhos (sem a totalidade dos Distritos) da Horta e de Angra? O facto de na ribeira da Ribeira Grande se concentrar o maior número de moinhos da Ilha e das Ilhas (essencialmente moíam trigo) é um bom indicador: produzia-se aí perto muito cereal. Além do que vinha de Ponta Delgada moer á Ribeira Grande. Uma outra possível aproximação à resposta, talvez se possa deduzir de uma acta de 1858 da Câmara da Ribeira Grande: ‘Este Concelho, sendo neste Distrito o segundo.’ E ‘nele se dão todas as comodidades assim de viação, como essas outras filhas da indústria comercial, agrícola e manufactureira.’ Portanto, laranja, milho, trigo e outras produções. E quanto aos outros concelhos da Ilha e dos Açores? Sigam o meu raciocínio? Em 1848, a Câmara de Ponta Delgada em carta enviada aos Deputados da Nação, também sem adiantar números, reclamava ser ‘a 3.ª cidade da Monarquia em razão da sua grandeza, população e comércio (…).’ Em 1856, Francisco Maria Supico ou João Albino Peixoto ou mesmo ambos, reclamavam ser ‘esta Vila [da Ribeira Grande], a primeira e principal de toda a monarquia, já pela sua numerosa população e riquezas, e já pela actividade e inteligência de seus habitantes (…). Então, em que ponto ficamos? Vamos a um exercício de dedução? Se Ponta Delgada era a terceira cidade da monarquia, e se a Ribeira Grande era a segunda Vila de São Miguel e a melhor vila do reino, logo, todas as Vilas dos Açores e do Reino ficar-lhe-iam atrás. Certo? E quanto a cidades? Vejamos o que escreveu Supico em 1863. Em termos de ‘riqueza e progresso, a Vila da Ribeira Grande excede a algumas povoações portuguesas condecoradas com títulos de cidade.’ Quais seriam? E agora? Mesmo que os indícios aqui apresentados - baseados em sondagens cirúrgicas à vastidão de fontes -, sejam plausíveis, qualquer conclusão deve ser cautelosa e provisória. Em 1852, mesmo no caso de não superar a Horta e ficar longe de Angra, ficando à frente de Ponta Delgada na transformação dos cereais, em relação às já cidades e à vila, sua rival, poderia a Vila da Ribeira Grande ser considerada ‘rica e progressiva?’ A Capital do Norte? A minha resposta é: poderia. E a vossa?