Memória atrapalhada

 

                                                                     
Entrei claramente naquela chata fase do meu viver em que as visitas aos senhores doutores começam a multiplicar-se demais para o meu gosto. E chegou a vez de ir consultar o neurologista, a conselho do meu médico rendido à minha queixa, “o sr. doutor sabe, tenho-me andado ultimamente a esquecer de coisas que não me esquecia dantes e isso não para de me dar a volta ao miolo.” Meu médico há tempo mais do que suficiente para conhecer bem o meu jeito de falar, ele não se espantou, “oh sr. Cardoso, mas isso não é assim coisa do outro mundo; acontece com o avançar da idade.” Percebi o seu ponto de vista, porém alinhavei-lhe melhor o meu, “tá bem, mas o senhor não acha estranho eu ir ali tratar duma coisa qualquer e chegar lá já esquecido do que ia fazer? E o pior é que volto para trás danado com esta minha memória teimosa em trair-me assim tão facilmente. Alguma coisa não deve andar lá muito bem cá por dentro.” O homem olhou para mim com um sorriso travesso estampado no rosto e confirmou-me, “para lhe falar a verdade, concordo que o envelhecimento é, de facto, uma grande chatice capaz de nos trazer mudanças incómodas e desagradáveis, mas no que diz respeito à saúde, cada pessoa tem os seus desafios próprios e o melhor será levar o meu amigo a consultar um especialista que lhe possa conseguir dar uma resposta mais satisfatória à sua pertinente pergunta.”
E lá fui então parar ao neurologista, um simpático sujeito relativamente mais novo do que eu, que me pôs logo à vontade, ao repetir realçando, por outras palavras, a ideia do outro médico, “esta coisa de ficarmos velhos mais depressa do que desejaríamos é, sem dúvida alguma, um sério problema que bem gostaríamos não se vir cá meter connosco tão cedo, mas que remédio temos senão lidarmos com ele de caras? Verdade, sr. Cardoso?” Dei à cabeça, que sim, deixando-o continuar, “ninguém tem respostas automáticas nem curas milagrosas para as complicações neurológicas que nos chegam com a idade, e tudo o que podemos fazer é avançar com os exames necessários para escolhermos um tratamento adequado.” Agradou-me a sua serena maneira de abordar a situação e deixei-o prosseguir, “para já, se não se importa, vou-lhe fazer um simples teste – pode repetir primeiro e decorar depois as seguintes três palavras?” Claro que não me importei de o ouvir soletrar pausadamente, “paz, saúde, pão,” e repeti-as, nas calmas, antes dele me lembrar, “olhe, não se esqueça delas, porque vai ter que me voltar a citá-las dentro de instantes.” 
Tomei fôlego e respirei fundo, a pensar cá para comigo se não haveria ali um truque hábil para me trocar as tintas e pôr-me às aranhas, coisa que suspeitei ainda mais quando ele tratou de me despistar a conversa usando perguntas propositadas para me caldearem as ideias, a fim de me fazerem esquecer as três palavras a testarem-me a memória. Com o juízo já meio toldado, ouvi a sua voz interpelar-me, “muito bem, agora vamos lá a ver se ainda se recorda das tais três palavrinhas de há pouco...”, fechei momentaneamente os olhos e lá pus a minha gasta memória à prova, “paz, saúde... pão e vinho.” Tipo bem-disposto, ele tinha de se rir, como não podia deixar de ser, ao fazer-me ver, “para lhe ser franco, sr. Cardoso, não acho a sua memória fraca; pelo contrário, vejo-a fresca, pois não só relembrou logo as três palavras indicadas como foi buscar mais uma que eu não lhe pedi, mas presumo lhe deve ser muito querida. Vinho não é vocábulo de nos vir, à toa, à mente.”
Naquele instante, o bem-humorado homenzinho já não se ria sozinho. Eu também não me pude aguentar, “sr. doutor, vou-lhe confessar igualmente com franqueza, nesta altura do ano, na minha terra de origem – e lá lhe ilustrei de onde era – festeja-se durante semanas seguidas uma celebração muito tradicional entre o nosso povo que nos faz partilhar pão e vinho por toda a gente, e daí estas duas palavras andarem sempre muito juntinhas na mente e na memória de quem vem desse meu torrão natal. O senhor vai-me desculpar, mas nestes dias, e não só, ambas palavras andam bem coladas à nossa memória coletiva.” Escusado será dizer que a consulta não me podia ter corrido melhor, sobretudo quando lhe complementei, à parte, “tenho que lhe acrescentar isto, sr. doutor; sabe, é que, normalmente, não me esqueço duma coisa que vou ali fazer por mim próprio, o problema do meu esquecimento acontece mais quando é a minha mulher a mandar-me fazer seja o que for; aí, a porca tende a torcer o rabo e é por isso que, a pedido dela, cá me encontro hoje a fazer-lhe esta visita.”

Agora sim, apraz-me mesmo dizer que boa disposição não faltava naquele consultório quando marcámos a próxima consulta para breve, a fim de reavaliarmos melhor o estranho estado de saúde desta minha atrapalhada memória.