
Fiz anos em janeiro e não escondo que cada vez mais me custa fazê-los porque a conta está a avolumar-se depressa demais para o meu gosto. Bem que gostaria de ter comigo esse mágico poder de trocar o implacável verbo somar pelo jeito que, neste caso, me daria poder sumir. Tivéssemos nós essa habilidade e seria, certamente, o fim da macacada. Mas como sabemos que não a temos, não nos resta outro remédio senão estarmos mentalmente preparados para o que aí vem. Envelhecer é uma realidade chata quando nos começa a bater incomodamente à porta. Bem que tentamos ignorá-la, sem sucesso. Teimosa, não desiste de nos vir lembrar que “o tempo voa e a idade não perdoa”. Por conseguinte, o melhor é mesmo capacitarmo-nos bem disso aproveitando, bem aproveitados, todos os momentos que nos são dados de andarmos por cá, ainda pelo nosso pé. Quando era mais novo, gostava muito de correr e fartei-me de suar acelerando demasiadamente as passadas em cata do tal futuro risonho que morava lá longe. É uma caminhada afadigada sempre a roubar-nos energias quase sem darmos por isso. Às tantas – e reciclando o castiço falar da era em que me criei lá no pacato meio rural da minha ilha berço – “quando uma pessoa mal s’apocata” – o fôlego falha-nos obrigando-nos a vagar o passo; coisa que até faz todo o sentido, à medida que o tempo se nos esvai, já que ninguém tem pressa de morrer.
Com sessenta e tal anos bem vividos à minha maneira, confesso que não me importava nada de poder viver outros tantos acompanhado deste mesmo salutar estado de espírito comigo a cada instante. Adoro viver, talvez por ter nascido numa mimosa terra onde calor não faltava nesta frígida altura do ano. Desde miúdo, comecei a sentir na pele a azáfama do Carnaval sempre oportuna em aproveitar o quentinho do Natal para não permitir que a temperatura baixasse grande coisa cá dentro da nossa alma ilhoa. Está mais do que sabido que a fogosa alma terceirense nasceu agasalhada pela sua criativa cultura popular, primorosa em saber amornar os gelados invernos das suas gentes. A fervorosa devoção ao Santo Entrudo fazia crescer um entusiasmo contagiante ao redor da Ilha abraçada àquele seu venerado ideal de boa disposição que começava com o prazer dos animados ensaios sempre ajudados pelos caseiros mata-bichos de consolar tudo e todos. As casas, sem o conforto das que hoje nos abrigam, abriam as suas portas ao convívio dos vizinhos e amigos atraídos pelos cheirinhos que saíam do arco da chaminé para as mesas generosas na partilha dos sorrisos derramando gargalhadas conforme o volume dos brindes ou a pimenta nas piadas. Ninguém levava a mal a espontaneidade das brincadeiras, mesmo se mascaradas, ou mascarados, de mau gosto, porque toda aquela folia era uma alegria, por vezes, quase doentia que abrangia miúdos, graúdos e, até os tipos mais sisudos não conseguiam escapar aos efeitos alucinantes dessa pegadiça febre carnavalesca.
A Ilha parava por três dias destinados à paródia, coisa que ainda continua a fazer pasmar tanta gente desconhecedora do febril fenómeno carnavalesco terceirense. Aonde é que se constou uma coisa dessas? Ao olhar hoje lá para trás, também pasmo só de pensar no felizardo que então fui em ter tido a chance de rimar um enredo dum bailhinho ensaiado com a malta amiga para saborearmos o gostoso prazer de darmos a volta à nossa festeira Terceira a dançar, a cantar e a divertirmo-nos ante os calorosos aplausos da nossa boa gente apinhando os seus salões, noite dentro...madrugada fora, sem arredar pé para não perder o lugar, porque esta vida, de facto, são três dias com o quarto, o tal das tristonhas cinzas só à espera de quem não se diverte enquanto é tempo. Disso confesso ter saudades sem fim – da farra, da algazarra e desse saboroso sentimento que de nós jamais se desagarra.
Faço anos um dia destes – quantos, pouco me importa e vontade de celebrar também não é muita porque a minha adiantada idade ensinou-me a festejar sim os momentos mais significativos, à medida que os saboreamos com quem ternamente nos abraça. Jamais esquecerei aquela repetida conversa de meu avô vendo o tempo a fugir-lhe e as energias a faltarem-lhe – “sabe-se lá quem estará cá daqui a um ano com vida e saúde”. Eu sei que quero estar, por isso, investindo na minha sanidade mental ao partilhar a boa disposição de momento a pedir-me para concluir este meu já alongado desabafo, aqui vos deixo a cereja apetitosa no topo do carnavalesco bolo que preparo com algumas fatias já rimadas ao vosso dispor. A preparação do Carnaval não é só tempo de desmiolada folia. Pode sê-lo também de ponderada reflexão.
Corpo cansado que gemes
As amarguras da vida,
Diz-me porque tanto temes
As dores da despedida?
Será porque, ao espelho,
O facto de eu me ver
Em cada dia mais velho,
Não para de me doer?
A velhice amedronta
Mas o que somos não sai
Cá de dentro é que conta,
Por fora a casca cai.
Por dentro, sinto-me bem,
É isso que interessa;
Na vida, o tempo vem
E vai-se muito depressa.
Até parece que voa,
Para nosso desprazer,
A idade não perdoa;
Custa bem envelhecer.
Mas há sempre Carnaval,
Antes das cinzas na testa,
P’ra nos lembrar, afinal,
Que a tristeza não presta.
Façamos a bem, ou mal,
Desta vida uma festa!!!
