A Mulher, o jogo mais perigoso, de Maria Luísa Soares, um romance polifónico

 

Maria Luísa Soares é a afirmação inequívoca de uma verdadeira vocação de escritora. Em todos os seus romances, Quatro vozes e Virgínia (1994), Em nome dos princípios (1998), A ilha décima (2001), Olhando o nosso céu (2005), No tempo dos jacarandás (2011) e com A Mulher, o jogo mais perigoso (1ª edição 2019; 2ª edição 2023), deparamos com uma manifesta capacidade em explorar universos femininos. Com efeito, a autora sabe dar consistência e fundura psicológica às suas personagens que vivem num universo abrasado e perturbador, onde a tensão se sobrepõe à ação e a intensidade ao conflito. São mulheres complexas e enigmáticas, inconformistas e inconformadas, insuladas e inquietas, suscetíveis e insatisfeitas, sempre em busca de amor, sonho e felicidade.
Tal circunstância verifica-se em A Mulher, o jogo mais perigoso (Primeiro Capítulo, 2023), com as personagens que deambulam pelas 394 páginas do romance, e que, cruzando-se entrecruzando-se, conversam, em monólogo interior e na primeira pessoa, sobre experiências de vida vivida e sonhada, mantendo entre si mútuas relações de afetividade, fraternidade, cumplicidade, conflito, surpresa e contemplação: Sara, Virgínia, Sebastiana, Ana, Teresa, Carolina, Guiomar, Salomé, Marieta e Jesualda, cujas vozes narrativas vão dando conta de confidencialidades, sonhos, angústias, perplexidades, dúvidas, medos e contradições. São personagens que a Autora (enquanto criadora e narradora ficcional, não enquanto entidade física) trata por “filhas”. 
Na “2ª Parte” do livro ecoam vozes de “masculina sabedoria” em memórias soltas: Dionísio Ventura, Luís Filipe, Padre Silvestre, Inácio Jorge, Vicente, André, Francisco, Arquiteto, Alberto, Gerardo, dr. Tobias – também considerados “filhos” pela Autora. O que é curioso, e muito pouco usual na atual literatura portuguesa, é que estas personagens, “filhas” e “filhos” da Autora, transitam de anteriores romances de Maria Luísa Soares para o atual.
Por conseguinte, estamos perante uma vasta galeria de personagens, o que torna este um romance polifónico.
 Numa multiplicidade de registos (monólogo, poema, diário e diálogo) e discursos (narrador ora autodiegético, ora omnisciente), e com citações de vários e variados autores que vão pontuando as narrativas, estamos na presença de uma escrita tricotada pelas marcas da intimidade, reveladora de sentimentos e emoções… 
Livro de vibrações e olhares dispersivos, com espessura evocativa e profundamente humano, A Mulher, o jogo mais perigoso fala-nos das feridas da alma, isto é, da condição humana: amores e desamores, memórias e peregrinações interiores, tristezas e alegrias, inquietações e perplexidades, harmonias e dissonâncias, partidas e chegadas, perdas e ganhos, encontros, desencontros, reencontros…
Mas esta é também uma viagem pela geografia sentimental e afetiva dos lugares: Lisboa e Açores, com especial incidência para a Terceira, ilha histórica e heroica, microcosmo de referência de Maria Luísa Soares, que lança olhares sobre o imaginário açoriano enquanto memória vivíssima de vivências insulares. Ou seja, revisitação de pessoas, lugares e acontecimentos, já que a ilha – a perdida e a mitificada – viaja no íntimo da autora. (Não é, aliás, impunemente que se nasce numa ilha). 
Apreciei, em A Mulher, o jogo mais perigoso, a nomeação e a carga significativa dessa nomeação, sendo de registar um notável poder de observação e uma minuciosa pormenorização, bem como o ritmo discursivo e a frescura narrativa, sendo por isso de apetecível leitura (“le plaisir di texte”, segundo Roland Barthes) este livro singular, envolvente e tocante.
Prosadora vernácula que se esmera no cultivo da língua de Camões, eis uma Maria Luísa Soares vintage no seu melhor, isto é, na sua fase mais experimentada, consistente, criativa e fecunda. A ficcionar as suas (e nossas) interrogações. E, ainda e sempre, a escrever contra o esquecimento.