A Força das Sentenças, de Pedro Almeida Maia

 

A primeira vez que falei com alguém que tinha portas adentro um doente de Alzheimer foi no início dos anos dois mil. Estava a orientar uma tese de mestrado em Bioética e, numa conversa sobre o esforço que a elaboração do trabalho estava a exigir - a necessidade de articular a vida profissional e familiar - a aluna disse-me ter a seu cargo a mãe com aquela doença. Referiu-se, concretamente, à falta de apoio às famílias desses doentes, nomeadamente a não existência de lares em que eles pudessem passar o dia. Perante a minha estranheza, explicou-me que aquelas instituições não queriam ser responsabilizadas por doentes que eventualmente saíssem para a rua e se perdessem. Fiquei um pouco perplexo porque se, por um lado, compreendia a justificação das instituições, por outro imaginava o que é cuidar de um doente com aquela doença 24 horas por dia, 365 dias por ano.
A minha atenção à Alzheimer, que inicialmente se deveu ao facto de lecionar Bioética, aumentou quando o receio de me aparecer a doença começou a acompanhar-me, não que haja casos na família, mas sei que com o andar dos anos aumenta a possibilidade de se “receber a visita do senhor alemão”, como diz um amigo meu.
Compreende-se, portanto, que ao ler na imprensa que o livro de Pedro Almeida Maia A Força das Sentenças (Lisboa: On y Va, 2023, 139 pp.), que aborda a problemática da Alzheimer, tinha recebido o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes de 2023, eu me tenha apressado a felicitar o autor. Na resposta, o romancista disse-me que em breve receberia, pelo correio, um exemplar da obra premiada.
Quando o livro chegou, coloquei-o na fila de espera, na estante das obras a ler, mas não resisti por muito tempo à tentação de lhe pegar, e comecei a lê-lo aos bocadinhos, no meio de outras leituras.  Rapidamente, contudo, pus de parte os dois ou três livros que tinha entre mãos e dediquei-me em exclusivo ao romance A Força das Sentenças. O volume não é grande, são apenas 139 páginas, mas a sua leitura levou mais tempo do que esperava, porque o desenvolvimento da ação me obrigava a fazer muitas pausas para refletir. 
O primeiro dos vinte e cinco capítulos do livro começa com estas palavras: “Há quem se questione acerca de quanto pode um homem aguentar. Esta minha nova vida começou no infausto dia em que me entregaram o diagnóstico. Mais cedo ou mais tarde, aconteceria, tal como foi com o meu pai” (p. 13). O aparecimento da doença de Alzheimer levou a uma mudança brutal na vida do protagonista do romance. As rotinas de anos e anos de vida, quatro décadas, na mesma região e na mesma casa já não seriam fáceis de manter com o aparecimento da doença; imagine-se, agora, o impacto que foi para o Professor Quental, este o seu nome, que vivia sozinho desde a morte da esposa, mudar-se do Alentejo para Coimbra e, na nova moradia, ter uma empregada, a Dona Isaura, que desde o dia da chegada, resolveu impor a sua ordem na casa. 
O narrador da ação do livro é o próprio doente que ao longo da vida foi uma pessoa ordenada e meticulosa, com plena consciência do que significava ter Alzheimer; sabendo, portanto, que a memória ia começar a falhar pelo que tenta defender-se tirando notas em folhas de papel, defesa pouco eficaz, uma vez que as perdia. 
O desenrolar da narrativa é avassalador. Por um lado, obriga o leitor a fazer pausas para refletir mas, por outro, impele-o a continuar a leitura, espicaçado pela curiosidade de descobrir o que vai acontecer. A questão da memória está presente em cada página do livro; logo nas primeiras vamos assistindo às consequências do seu empalidecer acelerado. 
Quando a Dona Isaura se apresenta, acompanhada de um cão, e diz que vem da parte da doutora Madalena, o Professor olha para a senhora com total surpresa, porque não esperava a vinda de uma empregada, embora a médica lhe tivesse falado nessa necessidade e a filha, na véspera, o tivesse prevenido da sua chegada.
A Dona Isaura, depois de explicar que o cão é um presente da filha, pede ao professor para o “batizar”. Na procura de um nome, o doente divaga pelos nomes de velhos amigos, de escritores, cantores e outros artistas e “porque queria algo mais parecido com irrequietude”, dá-lhe o nome de D’Artagnan (22). No parágrafo seguinte, o Professor chama-o: “Anda cá, Porthos – aticei-o, uma hora depois, sabendo que havia qualquer coisa de pouco familiar naquilo”. A consciência, por parte do protagonista, do mau funcionamento da memória prolonga-se ao longo de todo o livro, com todo o peso que isso representa para o seu viver. Do princípio ao fim, o romance mostra a importância da memória na constituição da identidade pessoal. A identidade do ser humano, como mostrou Paul Ricoeur, é uma identidade narrativa, para o que a memória tem papel fundamental; a sua desintegração traz consigo a derrocada da própria identidade da pessoa. O doente/narrador vai descrevendo o esmorecer da memória, percebendo que a cadeia das recordações se desorganiza, saltando de lembrança em lembrança sem articulação. O mundo vai-se desmoronando à sua volta.
Há dois tópicos a que o Professor Quental regressa por diversas vezes: a esposa e a filha.
O doente, que enviuvara antes do aparecimento da Alzheimer, continua a sentir intensamente a falta insubstituível da esposa: “[v]i partir os meus amigos (…) pedi a Deus que me levasse. Depois, perdi-a (a esposa) para sempre, e aqui estou, com água nos olhos; só sem a minha mulher. É ela que me falta, é ela que não consigo substituir, é aquele sorriso que me alegrava, e agora a ausência fere. Sou menos homem, sou mais fraco, e a doença mata-me mais depressa” (79).
A filha aparece constantemente ao longo do romance. Na sucessão de perturbações, trapalhadas, incidentes e acidentes que se vão sucedendo, é ela o anjo da guarda que aparece para acudir. O doente tem consciência disso e tem este desabafo logo no início do romance: “A minha sorte é a Sarah” (17) e, com o passar do tempo, vai notando o esforço e o desgaste que a sua doença lhe causa. A dado passo, comenta: “A Sarah sentou-se no sofá a chorar. Vi-lhe a mágoa a sobressair, era evidente. Um terrível cansaço acumulado. Demasiado tempo a lidar comigo, com a minha enfermidade e com os meus narcisismos. Só que ela não desiste com facilidade. Não desiste de mim, porque obrigou-se a desistir de pequenas grandes coisas suas” (88). Umas paginas mais à frente, ao ver a filha notoriamente grávida, mostra-lhe a sua surpresa e ela reage “com aquela expressão de desapontamento (…) mas logo retomou o sorriso. Para ser sincero, não me lembro de referir aqui que ela estivesse grávida, mas vou reler tudo para confirmar. Vai ser mãe de um rapaz, e eu serei avô. Espero nunca me esquecer do meu neto” (91-92).
Num texto de 1983, Paul Ricoeur diz que a ficção é uma espécie de laboratório em que os escritores estudam a sociedade e fazem experiências. A Força das Sentenças, mais do que laboratório, é obra de um escritor com provas dadas e mestre em Psicologia, que retrata um doente de Alzheimer com o seu tremendo sofrimento e o daqueles que lhe são próximos. Um livro que vale a pena ler.