
Neste ano de 2024 comemora-se o centenário do nascimento do Professor José Enes (1924-2013). Quem pela primeira vez me falou no seu nome foi Manuel Raimundo Correia, no verão de 1963, quando foi nomeado coadjutor do Padre Cândido Botelho Falcão, pároco da Praia da Vitória, a propósito do seu último exame oral do curso de Teologia. Da conversa, percebi que era alguém fora do comum pelo seu saber e abertura de espírito. Com o tempo e devido aos meus interesses, fui descobrindo que José Enes era alguém com uma vastíssima cultura filosófica, teológica, literária e científica, e um dos mais célebres professores do Seminário de Angra cujo corpo docente, na altura, era excelente.
Depois de ordenado, tinha ido estudar para Roma (1945-50), onde se licenciara em Filosofia na Gregoriana, famosa universidade dos jesuítas. Esta experiência intelectual marcou-o para o resto da vida. Estou a ouvi-lo: “oh senhor, tive a felicidade de ser aluno de Hoenen, o último grande professor de Cosmologia que a Gregoriana teve!”
Esta ida para Roma foi um alargar de horizontes. Do ponto de vista de formação, concretamente de formação filosófica, no seminário tinha estudado a chamada Filosofia Escolástica e lido São Tomás de Aquino em latim, desde os seus quinze, dezasseis anos. A ida para Gregoriana pô-lo em contacto com um mundo filosófico muito mais vasto, pois naquela universidade lecionavam alguns dos mais célebres professores jesuítas, alguns deles alemães, o que foi importantíssimo para o desenvolvimento do pensamento pessoal do filósofo açoriano.
Em termos de experiência de vida, a ida para Roma, para além do ambiente universitário que o introduziu num mundo filosófico muito mais vasto pô-lo em contacto com pessoas de diferentes nacionalidades pois, tradicionalmente, a Gregoriana tem alunos de todo o mundo. Para além disso, é de notar que José Enes chegou a Itália em 1945; isto é, durante a Guerra, tinha assistido à chegada à Terceira dos ingleses, que desembarcam no Porto de Pipas, em Angra, a 8 de outubro de 1943, dos americanos, em 9 de janeiro de 1944, e à instalação da Base das Lajes; em 1945, chegou a um país e a uma cidade acabados de sair da Guerra, cujas marcas eram bem visíveis, como me disse numa das nossas conversas. Pode imaginar-se o impacto de tudo isso em alguém excecionalmente dotado que, de um dia para o outro, se vê lançado (Heidegger), atirado para um mundo cujo horizonte continuamente se alargava.
Terminada a licenciatura, José Enes regressou aos Açores e iniciou a sua atividade de professor no Seminário de Angra do Heroísmo, mas não se limitou a ser professor das disciplinas que tinha de ensinar. Teve, com os seus colegas professores, um projeto de formação religiosa e cultural para os seminaristas e estava convencido também de que havia que trabalhar para o desenvolvimento religioso, cultural e económico dos açorianos indispensável ao progresso e realização do ser humano. Sobre o primeiro, a consulta do livro Casa Santa, Mimosa…. Olhares sobre o Seminário de Angra 1950-1970 [BORGES, Artur Goulart Melo; PAZ, Olegário Sousa; ALAMEIDA, Onésimo Teotónio (coord.). Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2014], permite o acesso a abundante informação. Sobre o segundo, a leitura da parte final do seu texto de 1953 “Universalidade em Literatura”, dá uma pista para o que nos anos seguintes faria o Professor José Enes em colaboração com outros padres do Seminário de Angra.
Naquele texto, ao falar de literatura, afirmava que a contribuição do país para literatura universal tem sido escassa e aponta a razão: o homem que interessa à literatura e à Filosofia é o homem concreto, mas o acesso a esse homem tem faltado à nossa literatura por ela se preocupar essencialmente com a forma e não com o conteúdo, com o ser humano que sempre está presente na trama romanesca ou na poesia. Considerava o autor que há que regressar ao estudo sobre o homem que a educação humanista pela leitura dos clássicos permite. Como essa necessidade, considera o autor, dificilmente encontrará resposta no ensino oficial devido às suas características de funcionamento e à formação dos professores, torna-se necessário procurar um suplemento extraescolar.
José Enes reconhece que esse esforço tem sido feito por alguns intelectuais, mas poucos e com reduzida repercussão, pelo que, em seu entender “[p]recisamos de uma associação e de uma atividade publicitária que desperte o esforço individual”. Mais à frente apresenta como hipótese a criação de “uma sociedade”, a publicação de “uma revista” e a fundação de “uma editorial” visando a “educação humanista” [ENES, José - Açores no Coração. Textos de Crítica Literária e Cultural. Ponta Delgada: Letras Lavadas Edições, 2024, pp. 17-25]. Quem conhece o que aconteceu nos Açores nos anos seguintes, por obra de José Enes e de outros padres do Seminário de Angra, lembrar-se-á do “Instituto Açoriano de Cultura”, fundado em 1955, da revista Altlântida (1956), com a Colecção Ínsula, e das Semanas de Estudo (1961-1966).
A dinamização cultural que o Professor levou a cabo concretizou-se também pela escrita, bem evidente no livro Açores no Coração. Textos de Crítica Literária e Cultural. Consciente da importância que a literatura tinha e tem na vida açoriana, foi na crítica literárias, no ensaísmo sobre literatura que se lançou em ordem a participar do debate cultural para procurar a resposta à pergunta “O que é o homem?”, questão basilar da filosofia e da literatura.
Para essa discussão, no primeiro ensaio recolhido Açores no Coração, discute a questão da universalidade na literatura e, no segundo, com o título ”A Insularidade como Matriz de Identificação Literária”, pela análise da obra de Nemésio, vai procurar/encontrar o que identifica a literatura açoriana: a insularidade, que explica longamente. Seguem-se vários capítulos em que estuda vários autores açorianos com uma sensibilidade, um saber e uma profundidade notáveis. Os leitores destes ensaios que têm preparação filosófica, facilmente descobrem o trabalho filosófico sobre a linguagem que o autor apresenta nos seus textos de filósofo, se é que em José Enes é possível separar filosofia e literatura. Esses textos mostram à saciedade que o autor não é um literato, sem qualquer menosprezo pelos literatos, mas é um grande filósofo a ler literatura: vai mais ao fundo das questões. Devo confessar, por exemplo, que sobre a obra de Vitorino Nemésio, prosa e poesia, nunca li nada tão bom, tão profundo como os ensaios de José Enes recolhidos no livro Açores no Coração; neles assiste-se ao encontro de um grande filósofo com um grande escritor.
Sobre José Enes como crítico de literatura, é de notar o seu saber, a sua sensibilidade de leitor, o seu respeito pelos autores: aponta defeitos/limitações e qualidades sem minimamente ofender os autores, num equilíbrio notável procurando incentivar o autor e os seus leitores.
Para rematar, uma pequena história, contada por José Enes e significativa a vários títulos, para mostrar a importância que ele dava ao conhecimento da cultura do meio em que estava inserido. Chegado a Luanda, onde pensava que iria viver e trabalhar o resto da vida, procurou informar-se das culturas nativas daquela geografia e dirigiu-se a um antigo colega da Gregoriana. Depois dos cumprimentos e de terem posto a conversa em dia, José Enes disse ao que vinha. O amigo olhou para ele a sorrir e respondeu não o poder ajudar, porque sempre vivera no meio da cultura portuguesa.
