O meu 25 de Abril e “O Menino do Bairro Negro”

 

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'O Nome das Coisas'

 

Tinha eu 16 anos de idade e frequentava na altura o Seminário-Colégio Santo Cristo, em Ponta Delgada, São Miguel.
Numa bela manhã de quinta-feira, e recordo-me como se fosse ontem, durante uma aula matinal de Inglês, o saudoso padre Jaime da Silveira, da ilha das Flores, anunciava que tinha acontecido um golpe de Estado em Lisboa, o que mais tarde foi confirmado por um outro meu professor, esse grande humanista e amigo dos pobres, o padre Weber Machado, natural de Água Retorta, São Miguel. Sim, há uma revolução para instituir a democracia e acabar com a guerra no Ultramar: Angola, Moçambique e Guiné.
Confesso que inicialmente estávamos todos sem saber bem o que se passava, na expetativa de alguém revelar mais pormenores sobre os acontecimentos na capital portuguesa, mas no dia seguinte, a confirmação de que o governo fascista de Marcello Caetano havia caído às mãos dos militares do Movimento das Forças Armadas e que o general António Spínola era o novo chefe, embora não pertencesse ao MFA, mas era defensor incondicional da libertação das antigas colónias.
Pouco tempo depois, nas ruas de Ponta Delgada, começaram a surgir panfletos dos vários partidos políticos (PS, MDP/CDE, MES, PCP, MRPP, UDP, PPD, CDS, PDC (Partido da Democracia Cristã, suspenso de atividade política por ter supostamente apoiado o general Spínola durante a tentativa de golpe de 11 de Março de 1975 e por se ter tornado numa “barriga-de-aluguer” da extrema-direita (apesar do líder-fundador Sanches Osório ter sido um dos Capitães de Abril e alguns fundadores do partido terem sido democratas-cristãos).
Bom, mas o que é curioso e quero aqui partilhar com os leitores, é que meses antes da Revolução dos Cravos, entre colegas e professores havia a sensação de que algo estava para acontecer (talvez sabedores da tentativa falhada um mês antes de abril de 74) e a confirmar a suspeita, um dos alunos lembrou-se de escrever no quadro: Viva a Liberdade. O professor ao entrar na sala de aulas ordenou imediatamente que se apagasse a frase questionando quem teria escrito aquilo. O autor foi chamado ao quarto do reitor, mas escapou de castigo.
Outro pormenor reveledador de que a mudança estava iminente: na sala comum de convívio entre os seminaristas e colegiais, ouviamos música ao som de um gira-discos e canções de artistas e grupos famosos como Bee Gees, CCR, Adamo, Christophe, Gianni Morandi, etc., os portugueses Sérgio Borges e seu conjunto João Paulo e Quarteto 1111 e... imaginem: Zeca Afonso, com várias baladas de Coimbra. Contudo, dois dos vários temas que ouviamos secretamente e na ausência dos professores, porque não passavam na censura eram “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”. Isto um ano antes de acontecer a revolução. “Vocês tenham cuidado com essas músicas porque são proibidas e pode dar cadeia”, revelou um dos alunos. Momentos e episódios que ficam.
O período após a Revolução dos Cravos trouxe momentos de apreensão e preocupação porque a dada altura a cúpula do MFA e da Junta de Salvação Nacional era constituída na sua maioria por militares ligados ao Partido Comunista e outros à esquerda (Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho, os mais identificados) e os cravos estavam a ficar “demasiadamente vermelhos”. Era o tempo do Gonçalvismo. Foi então que o secretário-geral do Partido Socialista, Mário Soares, apoiado pelo líder do PPD (hoje PSD), Francisco Sá Carneiro e outros partidos à direita, confrontou o MFA, numa altura em que a administração norte-americana tinha já Portugal perdido para os comunistas da ex-União Soviética e com o movimento independentista FLA, liderado por José de Almeida, a ganhar cada vez mais força com o apoio dos EUA. Pelas freguesias havia quem lançasse o pânico: os comunistas vão tomar conta disto tudo e vão acabar com as igrejas. Claro que isso não cabia na cabeça de um mais entendido e informado. Recordo ainda que certos sermões de padres retrógrados e conotados com o antigo regime, lá do púlpito atiravam: “Meus queridos irmãos e minhas queridas irmãs, nós somos cristãos católicos e não podemos votar em partidos marxistas” e outras coisas do género. Certamente que nunca falaram aos fiéis sobre a Doutrina Social da Igreja.

Para muitos portugueses, o 25 de Abril foi a data que derrubou uma ditadura de direita para impor uma ditadura de esquerda e foi o  25 de Novembro que devolveu aos portugueses a possibilidade da liberdade e da democracia. Numa palavra, resgatou o 25 de Abril.

Contudo, um ano depois, aconteceram as primeiras eleições livres, por sufrágio direto e universal. Foram as mais concorridas e participadas eleições da história da democracia portuguesa, com uma afluência de 91% dos cidadãos recenseados, com alguns a exercerem o seu direito de voto de lágrimas nos olhos. Sem dúvida um momento que marcou um novo ciclo na história contemporânea portuguesa.
Contando com uma ampla participação, as eleições saldam-se numa estrondosa vitória para o PS que, com 37,9% dos votos, consegue eleger 116 dos 250 deputados da Assembleia. Seguiu-se o PPD, como 26,4% e 81 deputados. Os grandes derrotados foram o PCP (12%, 30 deputados), o MDP/CDE (4,1% e 5 deputados). O CDS ocupou o 4.º lugar elegendo 16 deputados, surgindo finalmente a UDP e ADIM, com apenas um deputado respetivamente.
Conferindo uma nova legitimidade aos partidos políticos e aos defensores da via democrática parlamentar, as eleições possibilitaram assim a convocação de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração do texto fundador da democracia portuguesa – a Constituição de 1976.
Cinquenta anos depois Portugal e os portugueses evoluiram consideravelmente, sobretudo depois da adesão à CEE, mas também é verdade que os cravos murcharam e há valores de Abril ainda por conquistar. Para muitos esses valores nunca chegaram, entre eles o saudoso Otelo de Saraiva Carvalho. 
Recordamos uma palestra proferida pelo general português, em setembro de 2014 na UMass Dartmouth, onde explicou os pormenores de como tudo foi planeado com o capitão Salgueiro Maia. Numa conversa a dois e sabendo de um certo desencanto com a situação da altura (2014), com o país virado à direita e a esquerda a perder de eleição para eleição, coloquei-lhe a pergunta: se soubesse na altura o rumo que Portugal tomaria hoje, teria avançado com a revolução? A resposta, clara e inequívoca: NÃO.