
No meu texto anterior, referi-me ao facto de, nos anos mais recentes, ser notória, em filmes (e, já agora, em séries televisivas), a evolução da conceção das figuras femininas dos contos de fadas, sobretudo em relação ao que é veiculado pelas diferentes versões de “autor”. Diversos filmes da segunda década do século XXI têm desconstruído os contos de fadas conforme os conhecíamos. Depois de ter referido Snow White and the huntsman [Branca de Neve e o caçador] (2012), de Rupert Sanders, Red Riding Hood [A rapariga do capuz vermelho] (2011), de Catherine Hardwicke, é também uma variante bem distinta das versões que conhecemos oralmente ou a partir da leitura de livros como a coletânea Capuchinho Vermelho – Ontem e Hoje, de Francisco Vaz da Silva, cuja leitura recomendo vivamente.
O caso de Capuchinho Vermelho de Red Riding Hood apresenta uma nova perspetiva, diferente do que é do conhecimento comum, no que à conceção feminina diz respeito. De facto, é possível adiantar a valorização da figura feminina através de dois aspetos imediatos: a sua idade e o seu nome. A menina do capuz vermelho é uma jovem adolescente, mais velha que a dos contos, portanto, e chama-se Valerie, nome que designa, à partida, a sua força, a sua valentia. Para além disso, Valerie define-se, logo no início do filme, como uma mulher consciente de que não é como as outras, já que, segundo ela, as meninas bem-comportadas não caçam coelhos e o seu amor pelo lenhador da aldeia, Peter, sempre lhe deu vontade, desde pequena, de quebrar as regras. E essa fuga ao instituído advém em boa parte do facto de estar noiva de Henry (o filho de ferreiro), num casamento de interesse: a mãe procura uma união rica, para que Valerie tenha uma vida melhor. Mas a rapariga não tem a mesma vontade; quer ter a liberdade de escolher o homem com quem procura partilhar a sua vida. Este desejo é evidente, ainda, no momento em que a avó lhe oferece o capuz vermelho, que Valerie entende como um presente de casamento, o que faz com que sinta que está a ser vendida, pois, simbolicamente, o capuz como oferta poderá significar a perda da virgindade e, consequentemente, neste contexto, a morte da sua liberdade de escolha. Uma escolha que terá de ser feita mais cedo do que esperava…
Na verdade, Valerie é perseguida obsessivamente por um lobisomem, ao qual está naturalmente ligada. Valerie (pres)sente a presença do lobo, a intuição feminina em marcha, e, no primeiro ataque da fera à aldeia, estabelecem um diálogo mental, em que ele lhe diz que são parecidos, que ela também é uma assassina e sabe da vontade dela de escapar, convidando-a, pois, a fugir com ele, ideia que não agrada à jovem.
Após sonhar que o lobo devora a avó, Valerie parte para casa dela, pois sente-a em perigo. Inteligentemente, arquiteta um plano para caçar o lobisomem. Peter aparece na casa da avó, entretanto. Julgando-o o lobo, Valerie é corajosa quando o apunhala, mesmo amando-o, o que prova como é uma mulher de reflexão, que não se deixa levar pelos sentimentos. Infelizmente, Valerie acaba por descobrir que o lobisomem é o próprio pai, compreendendo, então, que tem também sangue lupino. O pai tenta convencê-la a deixar-se morder, pois o facto de ser primogénita permitir-lhe-á ter o dom da invencibilidade. O pai procura, assim, pela consanguinidade, a manutenção da espécie, a pureza do sangue, a ligação íntima que mantinham por telepatia e que desvenda o caráter intuitivo, selvagem, natural, puro da rapariga. Porém, Valerie rejeita esse destino: ajudada por Peter, luta com o pai, que morde o rapaz, mas que acaba por ser morto pela filha, quando esta lhe crava no peito uma mão de uma armadura de prata, lançada por Peter, já infetado. Funciona neste momento o jogo edipiano, em que a maioridade quebra a relação infantil de Valerie com o pai/lobo, já que outro lobo, o sucessor, lhe cede/procura a mão: a ligação afetiva com o pai passa evidentemente para o novo lobo.
Peter parte para a floresta para aprender a lidar com o facto de ser lobo e para aprender a proteger a sua amada, que, finalmente, acaba por se lhe entregar fisicamente. Não apenas porque sabe a sua verdadeira natureza lupina, mas também, e talvez principalmente, porque, ao tornar-se amante do inimigo (a atração pelo perigo, o proibido, o marginal, a subversão às convenções) e vivendo isolada na floresta, na casa da avó, Valerie assume-se emancipada na sua vida independente e livre das falsidades da sociedade, fazendo as suas próprias escolhas e tomando as suas próprias decisões. É o que desvenda a cena final do filme (entre outras ao longo da narrativa): o olhar lascivo, “malandro”, com que ela olha o lobo que chega, mostra-a dona da sua vida sexual. Há, pois, a emancipação da jovem a todos os níveis.
A mensagem de Red Riding Hood torna-se, então, evidente, na medida em que apresenta como que um ritual de crescimento e, por conseguinte, de emancipação: eu sou dona do meu destino; eu escolho o lobo (homem) que eu quero; eu vivo da forma como me apetece. Quero fugir às regras, às tradições, à passagem convencional do sangue, ao testemunho familiar, ancestral; a herança familiar já não me serve, porque me prenderia a algo que eu sou, mas não quero ser; não quero ser uma loba, mas sim uma mulher de força, com poder de decisão, uma “predadora” emocional e sobretudo intelectual.
(Continua…)
Paulo Matos
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