
Nunca andei a toque de caixa!
Era a expressão que se usava quando se queria dizer que alguém caminhava com passo acelerado, ritmado, constante. Assim andam as bandas filarmónicas quando não vão em procissões ou em paradas mais seletas. Nestas, o andamento é outro.
O mais próximo que eu possa ter marchado a toque de caixa (sem ser a fugir de alguma palmada da minha mãe) foi durante os dois primeiros anos do Liceu, onde éramos obrigados a participar nas atividades e desfiles da Mocidade Portuguesa. Fardados a rigor, parecíamos quais discípulos empurrados para esquemas políticos de que nem sabíamos o significado. E até nesses desfiles nem marchávamos a toque de caixa, mas sim de tarolas tipo militar, onde o Oriovaldo Palhinha era mestre. Espero que os leigos em música, assim como eu sou, entendam que quando me refiro a “caixa”, não estou a falar em caixas de sapatos ou as agora muito frequentes caixas de cartão espalhadas pela Amazon nas suas entregas, mas sim daqueles tamboretes redondinhos e achatados que os executantes usam pendurados à cintura e dos quais tiram sons arrufados mediante as batidas de dois pauzinhos aguçados.
Ora, quem também nunca andou a toque de caixa foi o pesquisador e autor do novo livro publicado pela Portuguese Heritage Publications of California (PHPC). Na sequência de vários trabalhos que nas últimas três décadas têm enriquecido sobremaneira o horizonte cultural da nossa comunidade, surge agora este precioso exemplar, dedicado às bandas filarmónicas que existiram e ainda existem de forma mais ou menos organizada, no Estado Dourado desde 1898. Tony Goulart deve ser músico da minha categoria, nunca aprendeu a tocar nenhum instrumento, nem tem voz que sirva senão para espantar melros. Contudo, essa falta de habilidades não o tolheu de meter mãos à obra, de explorar jornais e coleções em bibliotecas, revirar e respirar o pó acumulado em manuscritos mais velhos do que os nossos avós, de contactar tanto os especialistas como descendentes de músicos e de associativistas pioneiros. Durante anos acalentou esta ideia, reuniu elementos e descobriu trilhos esquecidos. Sem pressas, caminhou ao seu próprio ritmo, escolheu as notas e as letras, regeu-se pelo compasso do seu tempo, até atingir a composição final. A paciência e a persistência têm um preço, mas também produzem prémios.
Assim como aconteceu com os outros trabalhos editados pela PHPC, também com este “Portuguese Bands of California, 1898-2023” acabado de sair a público, somos todos nós os premiados. Saímos vencedores porque o esforço de Tony Goulart e dos colaboradores da PHPC produziu uma obra de superior qualidade, da qual nos podemos orgulhar. Digo-o desta maneira porque sei que o objetivo do autor nunca se pautou por obter ganhos ou reconhecimentos pessoais, mas apenas em devolver à comunidade uma recolha do trabalho dos nossos antepassados, um estudo completo da história das bandas e filarmónicas que abrilhantam as nossas festas. Contudo, para que sejamos merecedores desta dádiva, teremos de ser justos reconhecedores do empenho do autor. Há que ajudar a espalhar o livro, pô-lo em movimento pela comunidade, fazê-lo chegar a quem o possa apreciar.
Este livro abre-nos inúmeras portas. Para os amantes de fotografia, e para os estudiosos dos nossos usos e costumes, há um manancial de oportunidades para o fazer: Observar as mudanças no feitio e nas cores dos uniformes, reconhecer até como o número de executantes foi crescendo, tentar encontrar caras conhecidas no meio dos grupos de músicos ou de gentes presentes nos festivais. Para mim, foi também uma viagem pelas amizades. Não que eu seja um afinado ouvinte de concertos, mas tenho a honra de ser amigo de músicos, alguns mesmo antigos colegas de trabalho nas construções. Assisti, nos momentos de descanso para almoço, sentado num balde virado de boca para baixo, a animadas conversas entre membros da Banda Nova e da Banda Velha, ouvi discussões sobre qual banda estava a tocar melhor ou tinha o melhor Mestre, dos preparativos para a viagem às ilhas, já dali a uns meses, ou das preocupações com as obras na nova sede e as angústias de futuros incertos porque ninguém queria assumir a liderança da direção. Numa das mais bonitas fotografias do livro, recordei a figura carismática do meu bom amigo Eliseu Neto, um apreciado músico que, enrolado no seu enorme sousafone, animou as fileiras de várias filarmónicas e isto sem entupir o bocal com os seus valentes bigodes.
Poderia dizer alguma coisa sobre o aspecto técnico ou sobre o conteúdo descritivo do livro, mas vai ser melhor deixar esses campos para outros mais abalizados do que eu, embora tenha ficado bastante satisfeito com a minha preliminar visualização. Conheço a obra do autor, sei do que ele é capaz de fazer e até já fui beneficiário da sua artisticidade e competência. Espero só que esta publicação não venha a ser usada para fins menos honrosos, que não seja aproveitada para trazer à tona antigas intrigas ou quezílias entre grupos, desafinações e desavenças entre pessoas que devem é manter o pessoal todo unido e alinhado.
Afinal, as bandas filarmónicas não são mais do que o espelho da comunidade. Em tempos de crises, elas podem sofrer feridas graves, sabemos que só com a ajuda de todos elas podem progredir. Há que ser abertos a possíveis mudanças, acostumarmo-nos aos novos gostos e estilos musicais, aproveitar a aderência de jovens músicos mesmo que não tenham qualquer relacionamento familiar com portugueses, estimular e empurrar para cargos diretivos jovens com valor e vontade de trabalhar. O mais importante é que, seja ao redor de um coreto ou a marchar a toque de caixa, as bandas portuguesas continuem a ser a alegria da nossa gente e um bastião da nossa cultura.
Não há maneira melhor para terminar esta crónica – de Hoje e de Sempre – do que traduzir as palavras do próprio autor, se ele mo permite, no último parágrafo de um dos artigos de abertura do livro: “Sempre pensei que este livro já devia ter sido escrito há muito, porque indubitavelmente as Bandas Portuguesas da Califórnia são os baluartes da nossa identidade e herança cultural. Agora, depois de ficar a saber muito mais acerca delas, chego à conclusão que as Bandas Portuguesas SÃO parte integrante da História da Califórnia e, como tal, não podem ser ignoradas.”
