Fazer canela e tirar alinhavos

 

Vi por aí, nas redes misteriosas da internet, a fotografia de uma máquina de costura antiga.
Tenho quase a certeza de que a da minha mãe era muito parecida com a que encontrei, embora não possa precisar agora se era da marca Singer ou Husqvarna. Tenho de confirmar com a sabichona da minha irmã, que é pessoa que nunca se esquece de nada. Recordo, contudo, que aquela máquina era uma fonte de exploração para mim, para além de ser um dos lugares preferidos para me esconder, debaixo da estampada coberta que a tapava quando não estava em uso. Sentava-me no pedal e para ali ficava em ligeiro balancear, a navegar nas ondas da imaginação. A comprida gaveta no centro e as outras quatro nos lados não serviam só para os carros de linhas e para guardar os pacotinhos com agulhas e alfinetes. Numa delas havia “a boneca dos alfinetes”, que me era proibido tocar, para não picar os dedos; noutra estavam depositados os carretes da canela; e ainda havia lugar para botões, colchetes e demais tralha própria para a costura, para além de quinquilharia avulso.
A senhora minha mãe passava horas sentada a pedalar. Fazia vestidos para as minhas irmãs, acertava as bainhas nas calças dos homens da casa, adaptava roupas dos maiores para os mais pequenos e modificava peças que vinham nas sacas de roupa da América. Cortinas, reposteiros, lençóis, toalhas de mesa, tudo passava pelas mãos dela e pela sapata da agulha, aquela peça que me impressionava no seu movimento de sobe e desce, a marcar passo no mesmo lugar. O processo de enfiar a linha nos diversos buraquinhos da cabeça da máquina trazia-lhe algumas arrelias. Um “Óh Nosso Senhor!”, seguido de um “Óh, mas que coisa!” enchia-lhe a boca, de onde nunca ouvi palavrão ou vulgarismo. Contudo, o maior problema era quando a correia de cabedal rebentava e tinha de ser emendada ou substituída por uma nova.
Nunca fui muito de me dedicar a afazeres daqueles mais indicados para as meninas. Mas, confesso, havia duas atividades que eu até implorava para as fazer: gostava de tirar alinhavos, entretinha-me, com uma tesoura pechinchinha, a desfazer os pontos; e consolava-me a fazer canela! Depois de muito pedinchar, ela deixava-me ajudar nessa tarefa de encher os carretes de linhas. Eu até sabia instalá-los naquele lugarinho da engrenagem, por debaixo da patilha. Mas não era só à roda da máquina da costura que eu gostava de dar uma mãozinha. Aliás, dava as duas mãos, estendidas, de modo a segurar as meadas de lãs, a fim de serem enroladas em novelos. Não, nunca aprendi a fazer malhas, não venham agora vocês com perguntas atrevidas.
Por falar em malhas, tenho de dedicar uns parágrafos a uma modernidade a que a minha mãe não resistiu, já que era moda na altura. Imagino que o meu pai não foi fácil de convencer, era uma despesa avultada, mas ela tinha um jeito especial de conseguir os seus intentos. Cismou e foi comprar uma máquina de tricotar, da marca Orion. Para começar, ia a lições à loja do Sr. Raul Aguiar, na rua da Palha. Depois, mandou fazer um móvel de propósito para instalar o diabo da máquina. Chamo diabo à máquina porque ela tirou anos de vida à minha mãe. Era uma coisa bem mais complexa do que a velha Husqvarna – sim, a Eulina confirmou a marca - que não foi abandonada, mas passou a ter muito menos uso. Lembro-me até que o sr. Aguiar deve ter excomungado a venda, várias vezes subiu a Miragaia para ir à nossa casa resolver situações que a mãe não conseguia desenvencilhar.
De facto, a máquina de tricô era complicada. Pelo menos assim parecia, para uma criança da minha idade. E, parece-me, a santa da minha mãe penou os olhos da cara a bem de ter mão para dominar a maquineta: eram muitas farpas, requeriam ferramenta especial para as manobrar, havia umas barras de metal com mais farpas, onde a peça de malha se ia esticando, assim como uns pesos especiais, para pendurar nas barras. Depois, para dar forma à obra em execução, havia que reduzir as farpas, descontar pontos, eu sei lá, era um bocado confuso. Na verdade, deixem que vos diga, ela sempre conseguiu fazer algumas peças jeitosas, blusas e pulôveres para cada um de nós, alguns até bem bonitos.
Com o passar do tempo, o uso da máquina de tricô também entrou em decadência, fosse por desinteresse da mestra ou por falta de tempo, devido ao acréscimo de trabalho doméstico. Para mim, aquelas peças metálicas e os pesos passaram a servir para brincadeiras diárias, inventava situações para os usar, como se fossem elementos de um jogo. Não sei que fim levou a máquina das malhas, se enferrujou ou se foi dada a alguém ou vendida. A da costura sobreviveu, ainda está na casa da Miragaia, embora eu duvide que tenha sido usada por outra pessoa que não a minha mãe.
Andei para aqui a fazer canela por causa de uma fotografia e a tirar alinhavos das recordações de infância. Cosi frases nas bainhas da memória e prendi botões nas camisas da saudade. Desenricei fios de lembranças e vesti camisolas feitas de amor e dedicação. Recordei pessoas, revi as suas faces, segurei as mãos que me ensinaram pequenas tarefas, até respirei os cheiros, os aromas da casa onde cresci e onde me ensinaram a ser gente. E tudo por culpa da fotografia de uma máquina de costura!
Talvez toda esta prosa tenha sido uma desculpa, já vi tantas fotografias de máquinas e não me levaram a esta viagem. Mas, desta vez, caí no poço da saudade. É que... amanhã faz 25 anos desde que a minha mãe partiu.
Imagino que deve andar a brigar com as agulhas e com as malhas celestiais. Eu continuo com os braços estendidos, não para fazer novelos, mas à espera do abraço da minha mãe.