E agora, América???

 

Tarde de 11 de Setembro de 1973, fim de Verão na Ilha Terceira.
Deve ter havido uma tourada nalguma freguesia da ilha. Ou talvez não, naquela altura elas não eram tantas como agora. E, se houve, eu não fui. Tinha 21 anos, ajudava (pouco) o meu pai na sua Loja e esperava que me chegasse a ordem de marcha para ser incorporado no exército, o que me mantinha, a mim e à minha família, numa angústia permanente. As guerras nas colónias africanas estavam ao rubro, o meu irmão por lá andava, nas matas da Guiné.
Como era costume, depois do jantar, encontrei-me com o meu amigo J.S. para a nossa “passeata higiénica” pelas ruas da Angra, onde, como nos cantou o poeta Marcolino dois anos antes, “A RUA É O FIM: a gente chega-se/aqui é o fim/a rua acaba e a ilha/a gente pára a ver o mar.… a gente fica-se/como quem vai ao horizonte/e vem”, e onde, invariavelmente nos cruzávamos com “suas empregadas domésticas, muitas delas/raparigos extremosos e prendadíssimos”.
O meu amigo vinha triste. Por entre os dentes, quando lhe perguntei o motivo da cara de sete palmos, sussurrou uma blasfémia, coisa que não lhe era habitual. “Filhos de p..!” Eu não ouvira as notícias, J.S. foi lesto a esclarecer-me: “Houve um golpe de estado no Chile. Os direitistas, apoiados pelo exército, tomaram conta do poder e assassinaram o presidente Salvador Allende”. Estou certo de que pouca gente na nossa cidade deve ter ligado importância às notícias. Os dois jornais diários terão, no dia seguinte, copiado uns títulos dos noticiários enlatados pela agência oficial e a coisa ficou-se por aí. Menos, claro, para os chilenos, que passaram anos e anos com uma feroz e violenta ditadura em cima das costas.
Uns meses antes em Lisboa, eu e o J.S. sentimos, a correr atrás de nós, a mistura do bafio dos cães com o suor asqueroso dos polícias de choque, e até nem éramos participantes em nenhuma manifestação, íamos simplesmente jantar à cantina da Universidade. A ditadura portuguesa ainda continuou a ser parceira da chilena durante mais sete meses.
Ontem recebi uma mensagem do J.S. Depois das saudações do costume, dava-me notícias da ilha e do país: “Por cá nada de novo, as mesmas rotinas, as mesmas batalhas. Para a semana temos eleições para o Parlamento Europeu e a tendência é a mesma dos últimos anos: reforço das forças extremistas”. Contudo, foi a última frase da mensagem que me tocou mais na alma. “Mas a maior ameaça está no dia 5 de Novembro. Vê se tens mão nisso...” O meu amigo referia-se às futuras eleições presidenciais americanas e tenta animar-me, dá-me uma força que eu não tenho. Sim, acredito que todos os votos são necessários e importantes, mas essa é a única força que tenho, o direito ao voto. De resto, só a esperança me ampara e espero que o discernimento norteie os eleitores
Os Estados Unidos, a minha RUA desde há 48 anos – e onde, mesmo se vou ao horizonte, não vejo o mar – tem vivido alheia a sistemas ditatoriais. Houve, isso sim, aproximações, tentativas não consumadas e agentes (leia-se, candidatos, mesmo alguns eleitos para cargos menores) que bem que se esforçaram nesse sentido. De Janeiro de 2017 a Janeiro de 2021 o país inclinou-se perigosamente para uma forma governativa de direita radical, pelo menos vista ao nível das instituições americanas. Um dos marcos mais salientes foi a desonesta e vergonhosa maneira como os republicanos manobraram as nomeações para o Supremo Tribunal Federal, onde os membros são escolhidos (pelo presidente) para cargos vitalícios. Assim, mesmo quando o presidente perdeu as eleições de 2020 - as tais que ele tentou por todos os meios invalidar – o Supremo Tribunal vai viabilizando as políticas impostas por quem já não tem maioria absoluta. As decisões relativas às leis que regulam o controle voluntário da gravidez são disso testemunhas, e nem sequer falamos nos casos em que alguns dos juízes supremos (e suas esposas) desavergonhadamente apoiam e suportam grupos e elementos da extrema-direita.
Sinceramente, amigo J.S, a situação está preta, como dizia o baladeiro brasileiro. A polarização é por demais evidente. Há duas Américas cada vez mais distintas e antagónicas, e, por muito que queira, não vou ser eu a ter mão nisso. Assustam-me, por exemplo, as ameaças e “convites” ao uso da força e ataques físicos contra funcionários dos precintos eleitorais, o que vai fazer com que muitos desistam desses trabalhos; não vejo com bons olhos o falatório que se vai criando ao redor da próxima eleição, quando muitos elementos conservadores já anunciam, à distância de cinco meses, que, se os democratas ganharem, é porque o processo foi “rigged”, foi tudo uma aldrabice.  Mas, se os republicanos ganharem, a aldrabice que preveem transformar-se-á numa grande vitória! Para eles, a diferença entre uma “rigged” ou “fair” eleição está no facto de perderem ou ganharem. Táticas parecidas às usadas depois das eleições de 2020 podem renascer agora, mesmo que não tenham resultado na altura. O facto de centenas de participantes na invasão do Congresso terem sido condenados a penas de prisão, não impede outros seguidores do culto MAGA de tornarem a fazer patifarias ainda piores.
Às vezes dá-me vontade de rir – para não chorar – quando vejo pessoas que se professam devotos cristãos de desculparem toda e qualquer imbecilidade do antigo presidente, - nem que ele fosse pessoa que sempre viveu uma vida imaculada sem pecado - mesmo depois de ter sido considerado culpado de 34 crimes. Para eles, o outro, o velhinho tonto é que é o Diabo personificado.
Há sete anos publiquei uma crónica intitulada “O DDT e os Ratos”. Li-a ontem e confirmei que não me enganei nas previsões que fiz na altura, na primeira semana da administração Trump. Foi quando o comparei ao DDT, uma fórmula química que prometia ser remédio para muitas coisas, mas que se tornou num desastre ambiental e humano. Afirmei que a culpa não era só da nefasta personagem que nos saiu em sorte, mas de “todos que o estão a usar, no sentido de se aproveitarem da fraqueza de espírito dele, da vergonha que ele não tem e com o descaramento de nos quererem fazer passar a todos por tolos”. Passados sete anos, tenho esperança de que os americanos não se deixem enganar, como em 2016. Senão...o que será de ti, Ó América?
Muito mais haveria para dizer sobre este assunto. Os limites de uma crónica de jornal servirão de barragem, quiçá temporária. Estas mal traçadas linhas (dizia avó Delminda) servem apenas para recordar as coisas que aprendi com o J.S. e dizer-lhe que aqui , no El Dorado, a vida continua, e que há novas batalhas pela frente. O Povo americano é que terá de ter mão nisto, usando o voto livre e esclarecido para desviar das nossas rotinas os deploráveis elementos que nos querem transformar naquilo que nunca fomos.
Que esta RUA não tenha fim.... É imperioso não desviarmos os olhos do horizonte.


PS: Um dos pontos que poderia incluir quando mencionei, no último parágrafo, que “Muito mais haveria para dizer...” é expressar a minha opinião que, a nível global e mesmo a muitos níveis internos, a América nunca foi isenta de culpas. Escrevi assim no acima mencionado artigo “O DDT e os Ratos”, de 2017: 

“Esta nação, para além da tenacidade e robustez que o seu símbolo – a águia real – representa, também já foi ave de rapina, já cometeu erros e destruição por este Mundo fora. É um facto a que não podemos fugir.”
Um desses erros foi mesmo a influência e apoio que o governo americano deu aos golpistas chilenos, aliás como fizeram noutros países.
Que fique anotado que a maioria das considerações expressas neste artigo e no outro de há sete anos, se prendem quase exclusivamente com as manobras e manipulações da política interna americana.