
Visito amiúde o pequeno espaço do Museu de Lincoln, a cidade onde vivo já vai para uma dúzia de anos. Fica ali mesmo no downtown, ocupa parte do rés-do-chão de um dos mais modernos e maiores edifícios do burgo, de frente para a praceta central, um retângulo ladrilhado e enfeitado por um tanque redondo, com repuxo.
Parece que é um Museu típico destas pequenas cidades californianas. As suas paredes estão completamente cobertas com quadros e fotografias antigas, há móveis e estantes repletas de objetos que testemunham o desenvolvimento da cidade, desde que foi criada, na década de 60 do século IXX. Divididos em várias secções, os espaços mostram o passado da cidade, começando pelos tempos das tribos dos Índios Nisenan e Maidu, da descoberta do ouro, do incremento que as linhas de caminho de ferro trouxeram a esta zona e às mudanças na economia da região. Duas das maiores exposições retratam, uma, os trabalhos das “canarias”, que processavam as grandes quantidades e variedades de frutas produzidas nos pomares locais e, noutra, com grande detalhe, está documentada a atividade do maior complexo fabril da região, inaugurado em 1875, a “fábrica dos pipes, como lhe chamavam muitos dos imigrantes portugueses que lá labutavam, na produção de canos e outros produtos feitos de argila.
O Museu é mantido e gerido por uma associação de voluntários, quase todos reformados. São pessoas muito simpáticas e sempre dispostas a ajudar e a explicar aquilo que sabem. Nota-se que gostam de receber os visitantes, esmeram-se por proporcionar uma boa experiência a quem os procura. Depois de lá ter ido duas ou três vezes, já me conheciam pelo nome e sabiam do propósito que me levava a pedir-lhes informações: eu estava à procura do Santana!
O problema é que o Santana não aparecia, devia estar escondido. Rebuscámos ficheiros, abrimos documentos, metemos o nariz e os olhos em centenas de papéis e vimos dezenas de fotografias que quase se desfaziam nas nossas mãos; as diligentes senhoras telefonaram para outros voluntários e chegaram à conclusão que quem seria capaz de desenrolar o novelo seria o Bill Clinton! Fiquei assim meio espantado, o que é que o antigo presidente dos Estados Unidos tinha a ver com o Santana ou, sequer, com qualquer pessoa deste povoado entalado entre os sopés da Sierra Nevada? A minha admiração não lhes foi estranha, já estão acostumadas. Informaram-me que o Bill Clinton de Lincoln é apenas um dos voluntários, senhor que comunga do mesmo nome do ex-presidente e que gosta de fazer pesquisas sobre a história da cidade. Tem, no seu rol de amigos, alguns descendentes de imigrantes açorianos que lhe ofereceram, embora em pequena quantidade, documentos relativos à nossa comunidade, para figurarem na coleção do Museu.
Talvez seja altura de eu explicar quem é o Santana. O meu amigo Tony Goulart, que não é melro de parar em ramo verde, depois de muitos anos a “fabricar” livros sobre as vivências da comunidade portuguesa na Califórnia, resolveu dedicar mais um bocadinho do seu tempo a pesquisar a História (e as estórias) das bandas de música que os imigrantes açorianos criaram por estas bandas... e realmente foram muitas! Não me vou meter em falatório sobre o futuro livro, deixo isso para o autor fazer a seu tempo. Só que, como era preciso saber uns pormenores sobre algo que se passou aqui em Lincoln, o meu amigo pediu-me que tentasse descobrir uma fotografia do Santana. Trata-se de um músico madeirense, já referenciado por T. Goulart como sendo maestro-fundador de filarmónicas na segunda década do século passado. Andou por San Diego, por Turlock e havia notícias publicadas em jornais portugueses que indicavam que ele teria sido o mestre da Clay City Band, o grupo musical que abrilhantava as Festas do Espírito Santo aqui à roda.
Foi isso que as senhoras do museu, com a preciosa ajuda do mister Bill Clinton, conseguiram desenrascar: uma fotografia onde E. J. Santana aparece todo pimpolho, com a sua filarmónica de... catorze músicos! Contudo, embora satisfeito por que a busca produziu efeito, fiquei triste com o que se me deparou: não há quase nada neste Museu que ilustre a passagem das famílias portuguesas nesta cidade. E fico triste porque vejo que praticamente tudo se perdeu, ou melhor, o nosso passado como comunidade nem sequer foi preservado, ninguém teve o trabalho e o cuidado de guardar fosse o que fosse em lugar próprio, para além de meia dúzia de fotografias e de recortes de jornais que nem estão devidamente organizados. É pena, já que esta é uma cidade onde acontecem anualmente Festas do Espírito Santo que atraem muita gente e que, por sinal, este ano completam 100 anos de existência, foi mesmo a Banda do Santana que as abrilhantou pela primeira vez, em 1923.
Sei que esta falta de materiais de estudo é, talvez, aparente. Os álbuns de fotografias, as mantas de retalhos, as coroas do Espírito Santo, os documentos antigos (Passaportes, registos de batismos e de casamentos, diplomas escolares, etc.) existem, guardados nas casas de muitas famílias. O que eu gostaria muito de ver era esses documentos serem devidamente copiados e alguns exemplares entregues a organizações onde pudessem ser estudados e postos à disposição de futuros investigadores. Aposto que o Museu Português de San Jose, a J.A. Freitas Library, de Modesto, mesmo o recém-formado Portuguese Beyond Borders Institute da Universidade de Fresno, para além de muitas outras organizações, ficariam orgulhosas em receber esses legados, com o propósito de manterem acesa a chama iniciada com a chegada dos primeiros imigrantes. Ontem, quando comecei este texto, chegou-me uma notícia muito interessante: o Carnegie Museum do Condado de Kings, com sede em Hanford, vai organizar uma série de exposições para enaltecer a contribuição da comunidade portuguesa naquela zona do centro da Califórnia. Se iniciativas como esta surgissem em mais museus ou Centros de Estudo, ficaríamos mais enriquecidos.
A comissão das Festas do Espírito Santo de Lincoln está empenhada em promover o seu centenário com o devido relevo, mesmo atendendo às difíceis realidades que se lhes deparam. É bem possível que nem consigam contar com a participação de uma das 14 bandas filarmónicas ainda em atividade na Califórnia e, como de costume, para colmatar a falta, endereçam convite à banda do High School local. Para mim, é sempre um momento de aperto na garganta ouvir aqueles alunos americanos tocarem “A Portuguesa” e o Hino do Espírito Santo, embora me consolasse mais se fossem tocados por músicos portugueses.
Infelizmente já não há E. J. Santanas por estes lados...
