O 25 de Abril, a História e as estórias 50 anos depois

 

Cumprem-se amanhã, 25 de abril de 2024, 50 anos sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974, um dos momentos altos da História de Portugal que pôs termo a 48 anos de ditadura fascista e a uma guerra colonial que vivi em Angola por 12 longos anos (1961-1973).
O 25 de Abril devolveu aos portugueses e aos povos sob o seu domínio colonial a liberdade e portanto uma nova dignidade.
Nas últimas semanas tenho vindo a recordar algumas estórias à margem da História vividas em 1974-75 em jornais da comunidade portuguesa nos EUA por onde passei (Portuguese Times, Jornal de Fall River, Azorean Times/Comunidade e Portuguese Post) – e como tal não posso deixar de lembrar uma famosa carta de Mário Soares publicada no Portuguese Times, embora não tenha sido um jornal político como foi o Diário de Notícias, que se publicou em New Bedford 54 anos (1919-1973).
O velho Diário já não se publicava quando do 25 de Abril, mas no período pós II Guerra Mundial foi um espaço de democracia e contava entre os seus colaboradores conhecidos contestatários de Salazar como os escritores José Rodrigues Miguéis e Jorge Sena, o padre Joaquim Alves Correia, o famoso Padre Larguezas, figura do MUD, de que Mário Soares fizera parte ainda estudante; João Camoesas, médico que tinha sido ministro da I República e residia em Taunton, e, claro, Abílio Águas, ex-cônsul e presidente do Committee Pro-Democracy in Portugal, criado em 1960, em Newark, NJ, e que reuniu um grupo de pessoas (emigrantes e exilados políticos) com o objetivo de ajudar a instituir em Portugal um regime democrático.
Um dos momentos altos do Comité foi a deslocação de Henrique Galvão à sede das Nações Unidas, em New York, em 1963, para falar da política colonial portuguesa. Galvão dedicou a Abílio Águas o seu livro ‘Da Minha Luta Contra o Salazarismo e o Comunismo em Portugal’, publicado em 1965 no Brasil, escrevendo: “A Abílio de Oliveira Águas e ao Committee Pro-Democracy in Portugal, a quem devo a melhor, a mais portuguesa e compreensiva das colaborações”.
Águas ofereceu o livro a Manuel Calado, que nos deixou em dezembro de 2022 (com 99 anos de idade) e foi durante 25 anos chefe de redação do Diário. Calado ofereceu-me o livro antes de falecer.
Abílio Águas foi das principais figuras da oposição nos EUA, antigo cônsul de Portugal em Providence, RI, tinha sido exonerado em 1926 pelo governo português por ter denunciado as condições em que eram transportados os imigrantes cabo-verdianos nos barcos da Fabre Line. Essa tomada de posição marcou o início de uma atividade política em que colaborou com destacados oposicionistas como Humberto Delgado, Henrique Galvão e Mário Soares, conseguindo que a ONU abrisse portas aos dois últimos.
Abílio de Oliveira Águas foi durante anos porta-estandarte da oposição nos EUA. Quando os oposicionistas precisavam de apoio nos EUA, o recurso era o Abílio, que era casado com a filha de um catedrático da Universidade Brown e tinha contatos académicos e políticos.
Águas conseguiu, por exemplo, que, a 1 de abril de 1970, Mário Soares viesse dar uma conferência de imprensa no Overseas Press Club, em New York, organizada pela revista Ibéria com patrocínio da Liga Interamericana dos Direitos do Homem e durante a qual denunciou a política colonial portuguesa e as prisões de Salgado Zenha e de Jaime Gama.
Nessa altura já Soares vivia em França. Tinha sido deportado em 1968 para a ilha de São Tomé, na costa ocidental de África, mas entretanto, a 3 de agosto de 1968, há 56 anos, quando gozava um período de férias no forte de Santo António do Estoril, António de Oliveira Salazar deu uma queda quando se sentava numa cadeira de lona e bateu violentamente com a cabeça no chão de pedra, sofrendo um acidente vascular cerebral que o deixou incapacitado.
Salazar nunca mais recuperou. Morreu a 27 de julho de 1970, ao que parece julgando que ainda governava Portugal e o regime que criou apenas lhe sobreviveu mais quatro anos.
Mas cerca de seis meses depois da deportação para São Tomé, Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar, autorizou o retorno de Soares a Portugal. Mas Soares tinha outros planos e partiu para França, onde se tornou professor part-time nas universidades de Sorbonne e de Rennes, e continuou a sua cruzada contra a ditadura e as suas guerras coloniais, sendo desse tempo a famosa carta aberta no Portuguese Times, que então ainda se publicava em Newark, NJ, mas já tinha sido adquirido por Joseph Fernandes e António Alberto Costa em novembro de 1972, embora continuasse a ser dirigido pelo seu fundador, Augusto Saraiva.
A carta sobre a questão colonial era em resposta a uma entrevista dada por Rui Patrício, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros, ao jornal espanhol Nuevo Diário e onde Mário Soares era referido. Foi escrita a 7 de dezembro de 1972, dia em que Soares completava 48 anos, e circulou nos meios da oposição, tendo chegado às mãos de Saraiva, que decidiu publicar na edição de 11 de janeiro de 1973.
Comecei a trabalhar no Portuguese Times em outubro de 1973 e Saraiva falou-me muitas vezes da carta e das reações negativas do cônsul de Portugal em Newark, mas nenhum de nós previa a Revolução dos Cravos e que Soares viesse a ser ministro dos Negócios Estrangeiros nos três primeiros governos provisórios a seguir ao 25 de Abril, primeiro-ministro de três governos, presidente da República por dois mandatos e por fim eurodeputado, marcando mais de 40 anos de democracia em Portugal.
Como tal, a carta tornou-se histórica. Penso que Portuguese Times (na melhor tradição do Diário de Notícias) e o Portugal Democrático (1956-1975), mensário do núcleo oposicionista de Portugal no Brasil, foram os únicos jornais a publicarem a carta.
Já agora, lembre-se que em julho de 1974, Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo provisório, aproveitou a deslocação ao Canadá para uma conferência ministerial da NATO e deu uma saltada aos EUA para entregar a Ordem da Liberdade a Abílio Águas durante uma homenagem que a comunidade portuguesa decidiu homenagear ao velho resistente no restaurante Venus de Milo, em Swansea.
Fiz parte de um grupo que se deslocou a Boston para dar as boas-vindas socialistas a Soares e do qual faziam parte, entre outros, o Madeira, funcionário do consulado de Portugal em Providence, o André, alfaiate em Fall River e o Jacinto Ferreira, que era presidente da LASA e anda agora pelo Brasil.
Tem piada lembrar que, nas euforias de abril, o Jacinto começou a tratar Soares por camarada, mas alguém da comitiva corrigiu: “Camarada não, sr. dr!”
A homenagem a Águas foi no dia seguinte e Soares foi entrevistado pela WLNE-TV, o canal 6, de Providence, com o diretor do Portuguese Times, António Alberto Costa, a servir de intérprete.
Mas embora não falasse inglês, Soares não gostou da tradução da primeira pergunta e tirou o microfone da mão de Costa entregando a um diplomata que o acompanhava e passou a servir de intérprete. Claro, com esse gesto, Soares arranjou mais um inimigo.
Lembre-se ainda que nesse dia um grupo de que faziam parte, entre outros, o dr. Manuel Luciano da Silva e Raimundo Delgado (já desaparecidos e que continuam a fazer falta), concentrou-se à porta do restaurante empunhando cartazes que reclamavam a demissão do embaixador (João Manuel Hall Themido) e a divulgação do nome dos pides existentes nos EUA.
Nenhum dos pedidos foi satisfeito. Hall Themido (que faleceu em 2017 aos 93 anos) foi embaixador de Portugal nos EUA de 1971 a 1981, tendo sido dos poucos diplomatas portugueses que se manteve no posto depois da queda da ditadura, o que terá sido um sinal de Lisboa de que não haveria mudanças nas relações com Washington.
Quanto aos pides, os nomes dos eventuais informadores da PIDE operando entre a comunidade portuguesa nunca foi divulgada, mas é presumível que existissem alguns.
A PIDE tinha cerca de 30.000 elementos na infernal máquina montada pelo regime fascista. O maior contingente estava em Portugal e nas colónias, mas haveria também informadores nas comunidades portuguesas da diáspora, alguns a troco de uns miseráveis escudos e outros nem isso.
O primeiro presidente pós 25 de Abril, o general António de Spínola, não tencionava acabar com a PIDE e chegou mesmo a fazer nomeações. Mas os capitães do Movimento das Forças Armadas opuseram-se e o grupo Spínola providenciou para que uns quantos pides se pusessem ao fresco e um deles terá sido o inspetor António Rosa Casaco, um dos operacionais mais temidos da PIDE, que ficou conhecido por ter chefiado a brigada que assassinou, em Espanha, a 13 de fevereiro de 1965, o general Humberto Delgado e a sua secretária, Arajaryr Campos.
No 25 de Abril, Rosa Casaco encontrava-se no Porto à frente da delegação da PIDE e, quando se tornou claro que o levantamento militar triunfara em Lisboa, abalou para Espanha.
Foi julgado à revelia (apanhou oito anos que nunca cumpriu) e, apesar do mandado internacional de captura, com a Interpol à perna, o antigo pide passeava-se calmamente pelo mundo, valendo-se sem dúvida dos compadrios e deslocou-se mais de uma vez a New Bedford de visita à filha, a esposa do cônsul de Portugal, Francisco Henriques da Silva, e fazendo-se passar por tio da senhora, que era na realidade sua filha.
Ficaríamos a saber tudo isso em 1999, numa entrevista do próprio Rosa Casaco ao semanário Expresso e conheci no consulado quem se lembrasse dele, um sujeito simpático que se fazia passar por familiar da Mrs. Henriques da Silva vindo do Brasil.
Disseram-me mesmo que numa dessas visitas para abraçar a filha e os netos, Rosa Casaco teria participado numa sessão patriótica realizada numa coletividade portuguesa de Taunton e, penso eu, talvez tenha gritado patrióticos vivas ao 25 de Abril.
Procurado pelas autoridades portuguesas, Rosa Casaco viveu calmamente em Espanha, na República Dominicana, no Brasil e, novamente, em Espanha até ser autorizado a regressar a Portugal, onde publicou as suas memórias e faleceu em 2006, com 91 anos.
O caso Casaco é uma situação insólita, mas dá-nos ideia de como Portugal é um país difícil devido aos parentescos. É um país pouco maior que o estado de Iowa (92.000 km2) e tem a população da cidade de New York , 11 milhões de pessoas que acabam por ser todos primos e primas e os chamados conflitos de interesses são inevitáveis.
Um bom exemplo é Marcelo Rebelo de Sousa, o atual presidente da República, cujo pai foi uma das mais destacadas figuras do Estado Novo. Baltazar Rebelo de Sousa foi várias vezes ministro durante o mandato de Marcelo Caetano e exilou-se no Brasil depois do 25 de Abril.
Marcelo Caetano esteve para ser padrinho de Marcelo Rebelo de Sousa e daí o seu nome.
Outro exemplo é Ana Maria Caetano, filha de Marcelo Caetano. Era funcionária pública e nunca foi perseguida pelo facto de ser filha do primeiro-ministro deposto, bem pelo contrário, conforme ela própria admitiu numa entrevista à RTP, acrescentando que havia até figuras de esquerda que se encarregavam de a proteger.
A questão é que Marcelo Caetano casou em 1930 com Teresa Teixeira de Queirós Barros, a filha de João de Barros. Assim, embora filha de primeiro-ministro ditador, Ana Maria era também neta de um dos mais notáveis oponentes da ditadura.
Tudo isto vem provar que Portugal é um pequeno país e, para lá dos partidos e dos regimes políticos, os portugueses são uma família onde todos são primos e primas e passaram a ter liberdade de pensar depois do 25 de Abril.
Já agora, a liberdade, meus caros, não é dos partidos políticos, não é de esquerda nem de direita, nem mais de uns e menos de outros. Liberdade tem de ser igual para todos. 
Até mesmo para uns quantos portugueses nostálgicos dos salazarentos dias estadonovistas que são contra o 25 de Abril.