Entre a vontade do doador e a proteção dos herdeiros legais: os limites da quota disponível

by | Nov 5, 2025 | Consultório Jurídico

Imagine, a título de exemplo, que António, viúvo, decide doar em vida a casa que tem ao seu filho Bernardo, que se encontra avaliada em trezentos mil euros. No entanto, António tem mais uma filha para além de Bernardo, a Carolina. À data dessa doação, o património de António correspondia a cerca de trezentos e cinquenta mil euros. Depois de António falecer e de ter sido iniciado o processo de partilhas, a Carolina verificou que a doação feita ao irmão mais velho consumiu praticamente todo o valor da herança, deixando-a sem a parte que a lei lhe garante como herdeira legitimária. Surge então a questão: pode Bernardo ficar com o imóvel para si, mesmo que isso prejudique a legítima da sua irmã?

A herança de uma pessoa divide-se, juridicamente, em duas partes: a quota indisponível, que corresponde à legítima dos herdeiros que não podem ser afastados (descendentes, ascendentes e cônjuge); e a quota disponível, de que o autor da herança pode dispor livremente, por doação ou testamento, a quem entender. Quando há dois filhos e nenhum cônjuge sobrevivo, tal como no caso em apreço, a herança legítima corresponde a dois terços do património, restando apenas um terço para a quota disponível. Se as doações feitas em vida ultrapassarem essa quota disponível, diz-se que são inoficiosas e terão de ser reduzidas para repor a legítima dos herdeiros prejudicados. Este processo chama-se correção legal, que corresponde precisamente à redução dessas doações inoficiosas: primeiro, pelas disposições testamentárias e, se necessário, como é o caso, nas doações feitas em vida.

Se o bem for divisível, far-se-á uma divisão proporcional, onde a parte necessária para completar a legítima do herdeiro é retirada, sendo o remanescente mantido pelo donatário. Se o bem for indivisível, há duas soluções possíveis: o bem pode ficar para o herdeiro legítimo, devendo este pagar ao donatário em dinheiro a parte que excede a sua legítima; ou o bem pode permanecer com o donatário, sendo o herdeiro legítimo compensado em dinheiro, de forma a ver reposta a sua parte legítima. A escolha da solução mais equilibrada depende do valor do bem, da liquidez disponível e da boa-fé das partes envolvidas. Em caso de desacordo, é o tribunal quem decide a forma de reposição, procurando sempre causar o menor prejuízo possível para ambas as partes.

O objetivo desta regulamentação não é punir a generosidade do autor da herança, mas proteger o equilíbrio familiar e o direito sucessório dos herdeiros “obrigatórios”. A legítima representa uma garantia mínima de património que não pode ser afastada, até mesmo pela vontade do próprio testador ou doador, que pode dispor livremente, mas apenas dentro dos limites da sua quota disponível.

A inoficiosidade das doações é um exemplo comum do equilíbrio que o direito civil português procura entre a autonomia da vontade e a proteção dos vínculos familiares. A doação em vida pode ser um ato de generosidade, mas não pode, nem deve, transformar-se num instrumento de exclusão sucessória para as partes legítimas. Sempre que a liberalidade ultrapassa a quota disponível, a lei intervém para repor a legítima, assegurando que todos os herdeiros legítimos irão receber o que lhes é devido por direito.

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