Nas duas crónicas anteriores analisámos o percurso histórico e a situação atual das filarmónicas, primeiro, nas ilhas do Atlântico em geral e, depois, nas ilhas dos Açores em especial. Vejamos agora o caso específico da ilha de São Miguel, de alguma forma paradigmático do fenómeno sociológico das filarmónicas micaelenses.
Teremos por referência um estudo que desenvolvemos, em 2019, junto de todas as filarmónicas dos seis concelhos micaelenses.
Os dados recolhidos e tratados são ainda preliminares, mas já representativos – envolvem 22 das 33 filarmónicas que se encontram atualmente em plena atividade: oito no concelho de Ponta Delgada, correspondentes às freguesias de Candelária, Capelas, Ginetes, Mosteiros (2), Relva, Remédios e Sete Cidades; quatro no concelho da Ribeira Grande, correspondentes às freguesias de Conceição, Maia, Rabo de Peixe e Santa Bárbara; três no concelho da Lagoa, correspondentes às freguesias de Água de Pau, Rosário e Santa Cruz; três no concelho da Povoação, correspondentes às freguesias de Água Retorta, Faial da Terra e Furnas; duas no concelho de Vila Franca do Campo, correspondentes às freguesias de São Miguel e São Pedro; e duas no concelho do Nordeste, correspondentes às freguesias de Lomba da Fazenda e Nordeste.
Desde logo, é curioso constatar as diferentes motivações – especialmente religiosas, mas também políticas – que se encontram associadas à criação ou à sobrevivência das filarmónicas micaelenses.
40% das 22 filarmónicas estudadas são fundadas por iniciativa dos respetivos párocos: Eco Edificante (Nordeste), Harmonia Mosteirense (Mosteiros), Estrela d’Alva (Santa Cruz da Lagoa), Imaculada Conceição (Lomba da Fazenda), Sagrado Coração de Jesus (Faial da Terra), Lira do Rosário (Lagoa), Lira das Sete Cidades (Sete Cidades), Nossa Senhora da Estrela (Candelária) e Nossa Senhora dos Remédios (Bretanha).
Não menos importante é a influência decisiva de famílias aristocratas e de dirigentes partidários na fundação e proteção das filarmónicas micaelenses: o morgado José Jácome Correia é o primeiro presidente da Filarmónica Eco Edificante da vila do Nordeste; o poderoso chefe do Partido Progressista, José Maria Raposo de Amaral, funda a Banda Minerva dos Ginetes e oferece o instrumental da Voz do Progresso da Ribeira Grande e da União dos Amigos das Capelas; o marquês da Praia e Monforte adquire o instrumental e o fardamento da Harmónica Furnense e da Voz do Progresso; o barão de Fonte Bela e o visconde do Porto Formoso patrocinam a aquisição do instrumental e do fardamento da União dos Amigos das Capelas; os abastados políticos Nicolau Raposo de Amaral e Guilherme Poças Falcão patrocinam a fundação da Lira do Espírito Santo da Maia, em 1937; e o próprio Partido Progressista assume a fundação da União Progressista de Vila Franca do Campo, em 1907.
Algumas filarmónicas sobrevivem por mercê dos donativos provenientes dos respetivos emigrantes, como a Fundação Brasileira dos Mosteiros, e outras, ironicamente, quase desaparecem por força do movimento emigratório dos anos sessenta para a América do Norte.
Nas últimas décadas, é justo destacar o contributo persistente dos músicos militares para a crescente qualificação do nível artístico das bandas civis. Atualmente, dos 22 maestros que dirigem estas filarmónicas micaelenses, 14 ou 63% estão ligados à Banda da Zona Militar dos Açores.
Estas 22 filarmónicas totalizam 804 músicos, equivalendo a cerca de 36 músicos por filarmónica. A mais numerosa é a Fundação Brasileira, dos Mosteiros, com 53 músicos. As menos numerosas são a Lira do Espírito Santo da Maia e a Lira das Sete Cidades, cada qual com 24 músicos.
Destes 804 músicos, 552 são do sexo masculino (68,65%) e 252 são do sexo feminino (31,34%). Os casos extremos são a Marcial União Progressista, de Vila Franca do Campo, com 40 homens e 1 mulher, e a Lira do Rosário, da Lagoa, com 16 homens e 16 mulheres. Em ambos os sexos, a média etária destes 804 músicos é de 26,7 anos.
Considerando a amostra em apreço, a filarmónica-tipo micaelense tem denominação religiosa, foi fundada há 109 anos, no meio rural, em contexto paroquial, graças à proteção benemérita de famílias abastadas, é constituída por 36 músicos, sendo 25 do sexo masculino e 11 do feminino, com uma média de 26 anos de idade, e atua em procissões e arraiais sob a direção de um maestro militar.
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José Andrade, Diretor Regional das Comunidades do Governo da Região Autónoma dos Açores
Texto baseado na comunicação apresentada ao colóquio “Questões de Identidade Insular nas Ilhas da Macaronésia”, a 5 de julho de 2029, na ilha de São Jorge



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