Há momentos em que um país parece suspender a respiração — quando o silêncio das urnas se transforma em murmúrio de renascimento. Depois de anos de ruído, medo e fadiga moral, a América voltou a respirar. O som do voto, antigo e frágil, voltou a ecoar como um cântico de sobrevivência. Desta vez, não houve estrondo nem epopeia, apenas o clique discreto de um velho termóstato democrático — sinal de que, mesmo exausta, a consciência coletiva ainda sabe regular o seu próprio calor.
As eleições recentes mostraram que o coração cívico da América continua a bater. Que, apesar da manipulação, do ódio institucionalizado e da fome invisível, há milhões que ainda acreditam no simples ato de escolher. Não foi um grito partidário, mas um sussurro de humanidade: “ajudem-nos a viver”. Entre slogans, números e desinformação, emergiu uma palavra que parece resumir o espírito do tempo — acessibilidade.
A acessibilidade tornou-se a medida moral da política: o custo do pão, da renda, do remédio. É o ponto onde se cruzam socialistas e moderados, urbanos e rurais. E, no entanto, há perigo em erguer um país apenas sobre esta palavra. A acessibilidade é o chão, não o teto. É o mínimo necessário, não o máximo possível. Uma sociedade que faz do “viver com o essencial” o seu maior sonho esquece-se de que a liberdade humana nasce quando o necessário é garantido — e o espírito pode então inventar.
Enquanto o primeiro trilionário da história acumula riqueza inominável, milhões de americanos sobrevivem com doze cêntimos na conta. O abismo já não é apenas económico, é moral. O país que se orgulhava de oportunidades tornou-se, para muitos, uma roleta injusta. A vergonha, outrora força ética, evaporou-se. O que antes seria motivo de rubor tornou-se espetáculo. E as fortunas que deveriam pagar o preço da solidariedade refugiam-se atrás de fundações com nomes elegantes e intenções piedosas.
Mas ainda há dois rostos da América. Um vive em Manhattan — frio, calculista, sem fisionomia humana. O outro vive em Queens — colorido, múltiplo, pulsante. É o rosto dos mercados de rua, dos sotaques cruzados, do risco e da esperança. É ali, e não nas torres de vidro, que o país continua a ser inventado todos os dias. O capitalismo de Manhattan especula; o de Queens cria. O primeiro empilha, o segundo sonha. E é do segundo que nasce a verdadeira energia americana — a que acredita que tudo pode começar de novo.
É essa energia que o autoritarismo tenta apagar. Cada vez que um governo transforma a imigração num espetáculo de humilhação, arranca uma raiz da própria alma nacional. A América nasceu da travessia, do exílio e da reinvenção — negar isso é negar-se a si mesma. Fechar fronteiras é fechar possibilidades. É secar o solo fértil da “terra desacostumada” de que falava Hawthorne, onde cada nova semente é uma promessa de futuro.
Mesmo assim, algo mudou. As urnas reacenderam uma centelha. O frio da apatia começou a derreter. A democracia, fatigada, mas viva, ergueu-se mais uma vez contra o autoritarismo e o medo. E, nesse gesto simples, lembrou ao mundo que a América ainda é capaz de se corrigir — que o país das promessas pode, por momentos, voltar a ser o país da esperança.
Sim, é preciso falar de acessibilidade — mas também de ambição. Porque a justiça social sem imaginação é apenas administração da miséria. A política deve garantir o pão, mas também o sonho. Deve assegurar o teto, mas abrir o horizonte. Quando Roosevelt sonhou com segurança na velhice, e Kennedy ousou prometer a Lua, não falavam de dinheiro — falavam de dignidade, de futuro, de grandeza humana.
A América precisa, mais uma vez, de se recordar de que foi construída não apenas por engenheiros e banqueiros, mas por sonhadores. Por aqueles que acreditaram que a vida pode ser melhor do que o mês passado, que o amanhã pode ser invenção. O destino de uma nação não é pagar as contas — é imaginar o impossível e torná-lo concreto.
Hoje, o país parece acordar lentamente desse longo pesadelo de cinismo. As luzes, uma a uma, reacendem-se. Em cada voto, em cada comunidade que resiste, há um sopro de poesia — o rumor de que, apesar de tudo, ainda vale a pena sonhar.O termóstato voltou a funcionar. O frio da indiferença cede ao calor humano da esperança. E talvez, quem sabe, desta vez a América não apenas sobreviva — mas volte a sonhar de novo com o país possível.
O termóstato voltou a funcionar. O frio da indiferença cede ao calor humano da esperança. E talvez, quem sabe, desta vez a América não apenas sobreviva — mas volte a sonhar de novo com o país possível.





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