O sismo de 1755 continua notícia, procissões em Cádiz e em Cacilhas e tostãozinho a Santo António

by | Nov 5, 2025 | Expressamendes

O sismo que arrasou Lisboa em 1755 continua sendo notícia

Cumpriram-se sábado passado 270 anos sobre o sismo de 1 de novembro de 1755 que destruiu Lisboa e que continua sendo um dos mais violentos terramotos registados até hoje na Europa. Estima-se que 90.000 pessoas tenham perdido a vida, foram destruídos 10.000 edifícios e 100.000 pessoas ficaram sem casa.

A tragédia aconteceu por volta das 9h30 da manhã de um sábado, as igrejas estavam cheias para as missas que celebravam o Dia de Todos os Santos e ruiram sobre os fiéis.

O abalo era um megaterramoto sentido em grande parte da Europa Ocidental e na costa noroeste da África. Houve três tremores no total e o segundo, com a duração de três minutos, foi o mais violento e crê-se modernamente que atingiu o grau 9 na escala de Ritcher. Mas mais horror estava para vir: o terramoto desencadeou um maremoto (tsunami) no Atlântico, que subiu o rio Tejo por volta das 9h50 e inundou as áreas ribeirinhas da cidade com ondas de 20 metros. A maré encheu e vazou três vezes no espaço de quatro ou cinco minutos.

As ondas de choque do sismo foram sentidas por toda a Europa e norte da África. As cidades marroquinas de Fez e Meknès sofreram danos e perdas de vida consideráveis (10.000 mortes). Os maremotos atingiram o norte de África (locais como Safim e Agadir) e o norte da Europa, causando inundações em Inglaterra e na Irlanda, Sicilia e a Finlândia.

À medida que se espalhava pelo Atlântico, o tsunami atingiu primeiro a Madeira, onde se registou uma onda de quatro metros, depois as Canárias, os Açores e finalmente as Caraíbas (Antígua, Martinica e Barbados), Brasil e Terra Nova (Canadá).

Embora o tsunami deva ter atingido a América Colonial, ninguém o registou, mas provavelmente as ondas terão chegado também à Costa Leste dos EUA. Dezassete dias depois do devastador sismo de Lisboa, por volta das 4h30 da madrugada do dia 18 de novembro de 1755, um forte sismo abalou a região da Nova Inglaterra. Registaram-se danos em chaminés, edifícios de tijolos e muros de pedra em localidades como Portland no Maine, Boston e Springfield em Massachusetts, New Haven em Connecticut e Halifax na Nova Escócia.

Em Boston, o sismo durou mais de um minuto e, segundo relatos da época, 1.500 chaminés foram destruídas, 15 edifícios sofreram danos e algumas torres de igrejas ficaram inclinadas. O sismo, que receberia o nome de Cape Ann, teve magnitude de 5,8 e foi sentido sobretudo nos EUA e no Canadá.

O futuro presidente John Adams, na altura com 20 anos e residente em Quincy, registou o terramoto no seu diário: “Sofremos um forte tremor de terra. Durou quase quatro minutos. Estava em casa do meu pai em Braintree e acordei a meio do sismo. A casa parecia balançar, oscilar e rachar como se fosse desabar sobre nós. As chaminés foram destruídas num raio de um quilómetro e meio da casa do meu pai”.

Nos dias seguintes ao terramoto, os ministros locais realizaram serviços de oração e as autoridades governamentais proclamaram dias de jejum, observados por aqueles que sentiram que a ira de Deus tinha trazido este terramoto sobre Boston. Nada menos de 27 sermões e relatos de outros terramotos foram publicados na Nova Inglaterra atribuindo causas divinas ao sismo. Um desses poetas, Jeremiah Newland, relacionou o terramoto de Cape Ann com o que destruira Lisboa. Os versos de Jeremiah Newland recordavam aos leitores a mão de Deus a agir no meio ambiente e advertiam os habitantes da Nova Inglaterra para que mudassem os seus hábitos, para que Deus, “forte o suficiente para afundar toda a Criação”, não castigasse a Nova Inglaterra como tinha feito com Lisboa.

John Winthrop (1714-1779), professor de Matemática e Filosofia na Universidade de Harvard, adotou uma abordagem mais científica atribuindo o sismo a uma violenta reação de calor e vapores químicos nas profundezas da superfície terrestre, tudo sob a direção de Deus, claro. Mas na altura a explicação científica foi contestada por outra que atribuia o sismo ao uso de pára-raios, que tinham acabado de ser inventados por Benjamin Franklin.

A tola e ignorante polémica sobre o uso de pára-raios arrastou-se por alguns meses movida por pessoas que não queriam o uso de pára-raios para proteger os edifícios. Em Portugal, a Igreja Católica e os seus seguidores também procuraram culpados pela tragédia do sismo de 1 de novembro e o Tribunal do Santo Ofício, a designação da Inquisição Portuguesa, criada em 1536 para perseguir e punir crimes contra a fé católica, queimou umas quantas pessoas na fogueira por causa do sismo.

No seu conto “Cândido”, Voltaire lamenta a destruição de Lisboa por um terramoto e critica os religiosos que pensavam que tinha sido “a vontade de Deus” e denuncia o envolvimento da própria Universidade de Coimbra num auto-de-fé em que foram executados condenados da Inquisição.

“Depois do terramoto que destruiu três quartos de Lisboa, o meio mais eficaz que os sábios do país inventaram para evitar uma ruína total foi a celebração de um soberbo auto de fé (ritual de penitência pública), tendo a Universidade de Coimbra decidido que o espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas em fogo lento com toda a solenidade é um segredo infalível para evitar tremores de terra”, escreveria Voltaire no seu polémico conto filosófico “Cândido” (1759).

Os autos-de-fé eram um grande espetáculo organizado pela Inquisição. Os condenados vestiam túnicas pintadas à mão por artistas especializados e o cadafalso era construído como se de um palco se tratasse para que todos pudessem ver.

Em Lisboa, os longos cortejos realizavam-se normalmente ao domingo e duravam, no mínimo, um dia inteiro. Muitos deles começavam no Rossio, às portas da Igreja de São Domingos, mesmo ao lado do Palácio dos Estaus, a sede do Tribunal da Inquisição e onde está hoje o Teatro Nacional Dona Maria II. Mas estes autos-de-fé, acompanhados por multidões em delírio, acabariam por incomodar o Vaticano, que recomendou a aplicação dos castigos em cerimónias particulares. O último auto em Portugal com condenação à fogueira teve lugar em 1766 e foi o de um padre jesuíta acusado de blasfémia, por ter dito que o grande terramoto de 1755 tinha sido “castigo divino”.

A Inquisição portuguesa estabelecida em 1547, no reinado de D. João III, famosa por perseguir e castigar judeus convertidos entre outras graves heresias, foi extinta por decreto em 31 de março em 1821.

 

Procissões em Cádiz e em Cacilhas

O historiador britânico Edward Paice, autor do livro “A Ira de Deus”, sobre o terramoto que destruiu Lisboa em 1755 e provocou 90 mil mortos, afirma que perante tanta tragédia se torna difícil acreditar em Deus, mas na realidade o sismo esteve na origem de duas das maiores manifestações religiosas da Espanha e de Portugal.

Naquela manhã, o terror também se apoderou do povo de Cádis, na Espanha. O mar invadiu a cidade com ondas de até 30 metros de altura que destruiam tudo e foi então que o frade capuchinho Bernardo e o pároco da igreja de La Viña, padre Francisco Macías tiveram a ideia de ir à igreja, pegarem num crucifixo e no estandarte da Virgem da Palma, a padroeira da cidade desde 1344, e sairam em direção ao mar que avançava e foi então que, perante o olhar atónito dos presentes, o mar recuou.

Desde então, no dia 1 de novembro, a Virgen de la Palma, a “Virgem Salvadorenha de Cádiz”, e o Cristo da Misericórdia saem pelas ruas da cidade numa procissão que é a mais famosa celebração religiosa da Andaluzia.

No dia 1 de novembro também se realiza em Portugal, na vila de Cacilhas, uma grande procissão evocando o trágico dia do terramoto e maremoto de 1755. A procissão evoca o gesto do catraeiro Pedro da Silva, que no dia do terramoto, vendo as águas do Tejo a invadir Cacilhas, foi à capela que ali existia e pegou na imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso venerada pelos pescadores de Cacilhas que lhe pediam proteção quando saíam para a faina no Tejo. Pedro da Silva levou a imagem ao colo até ao cais e reza a lenda que as águas do rio começaram a descer. Desde então Nossa Senhora do Bom Sucesso é a padroeira de Cacilhas celebrada com procissão que se realiza desde 1756 no dia 1 de novembro mostrando o reconhecimento da população por ter sido poupada ao maremoto.

Este ano, a procissão foi presidida pelo bispo da Diocese de Setúbal, D. Américo Aguiar e contou com a presença de centenas de pessoas que encheram as ruas de Cacilhas ou enfeitaram as janelas das suas casas para a passagem do cortejo.

Há 369 anos que a imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso sai da igreja paroquial de Cacilhas em procissão que percorre as ruas da localidade terminando no Largo de Cacilhas. A imagem é levada para a margem do rio, onde se desenrola o ritual da bênção e regressa depois ao altar-mor da igreja.

 

Um tostãozinho para o Santo António

Algumas expressões populares usadas pelos portugueses nasceram com o terramoto de 1755.

“Cair o Carmo e a Trindade” diz-se quando algo provoca grande surpresa ou confusão, mas já teve um sentido mais funesto. O Carmo e a Trindade eram dois dos mais importantes conventos do Bairro Alto lisboeta que ruiram com o terramoto e a expressão começou por significar o pânico e o assombro perante a tragédia. A expressão “rés-vés Campo de Ourique” utilizada para expressar alguma proximidade e escapar por pouco, resultou do facto da onda gigantesca que sucedeu ao terramoto quase ter atingido o bairro de Campo de Ourique.

Outra popular expressão, “já está a fazer tijolo”, é utilizada relativamente a uma pessoa que já tenha morrido e sido sepultada, e terá tido origem na reconstrução da cidade de Lisboa, após o terramoto.

O barro utilizado para os tijolos usados na reconstrução da cidade era extraído no único filão de argila da cidade, situado na zona entre o Bairro da Graça e a atual Rua da Palma e o Largo Martim Moniz e transformado na zona que ainda hoje é designada como Forno do Tijolo e Olarias.

Grande parte dessa área estava ocupada pelo cemitério mourisco da cidade, o Almacávar e rapidamente a extração de barro invadiu terrenos de sepultura com ossadas misturadas no barro transformado em tijolo. O calão da época do sismo criou expressões  como “maçou-lhe o cagueiro”, “Deus te pregue os miolos numa parede” e “afincou-lhe quatro lambadas”, e esta última expressão ainda se usa no norte de Portugal. A igreja de Santo António existente em Lisboa, perto da Sé, foi destruída pelo sismo e uma das primeiras preocupações dos lisboetas foi reconstruir a igreja. Era preciso arranjar dinheiro e as crianças da cidade começaram a montar pequenos tronos à porta de casa para pedir um “milreizinho para o Santo António”.

Diz a história que a igreja de Santo António foi quase inteiramente reconstruída graças às esmolas dadas pelos lisboetas às crianças. Se bem que ultimamente tenha caído em desuso em algumas regiões, em Lisboa a tradição dos tronos de Santo António ainda se mantém na altura das festas dos santos populares nos bairros populares e os lisboetas colaboram com gosto na diversão da criançada.

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