O rapto da estátua de Cabrilho
No dia 28 de setembro de 1542, uma quinta-feira, duas naus espanholas lançaram ferro na baía de San Diego. Eram os primeiros europeus a atingir aquelas paragens e o comandante da pequena expedição, um tal Juan Rodriguez Cabrillo se o considerarmos espanhol, ou João Rodrigues Cabrilho se for português, entrou na história como descobridor da Califórnia já lá vão 483 anos.
Apesar da importância do seu feito, João Rodrigues Cabrilho (vamos passar a utilizar a grafia portuguesa do nome) é o mais ignorado herói da época áurea dos descobrimentos quinhentistas tanto em Portugal como em Espanha.
A nacionalidade portuguesa de Cabrilho foi avançada pelo principal cronista da conquista espanhola da América, Antonio de Herrera, na sua “Historia general de los hechos de los castellanos en las islas i tierra firme del Mar Océano”. Adiantou Antonio de Herrera que “El virrey, no desalento por esto, despachó em 1542 dos de aqueles navios al mando de Juan Rodriguez Cabrillo, português honrado, valiente y práctico em la marina”.
Portanto, o nosso Cabrilho foi um navegador do século XVI e, ao serviço da coroa espanhola, efetuou explorações marítimas ao longo da costa da Califórnia, mas nada se sabe da sua infância, embora se acredite que tenha nascido na aldeia de Lapela, freguesia de Cabril, concelho de Montalegre.
Cabrilho embarcou para Havana ainda jovem e fez parte das forças com que Hernán Cortés colonizou o México, então conhecido como Nova Espanha. Em 1521, participou na conquista de Tenochitilán, capital do império Asteca, onde se ergue hoje a Cidade do México.
Entre 1523 e 1535, com o sucessor de Cortés, Pedro de Alvarado, Cabrilho participou também na conquista dos territórios que compreendem hoje as Honduras, Guatemala e San Salvador, ajudando a fundar Oaxaca, a capital de um dos 31 Estados do México). Em meados da década de 1530, Cabrilho fixou-se na principal cidade da Guatemala, Santiago, tirando partido do sistema de “encomienda” concedido pelo rei de Espanha aos colonos e que consistia no arrendamento de terras a longo prazo e o direito de utilizar mão-de-obra indígena.
Na sociedade colonial espanhola isto era visto como uma recompensa pelos serviços prestados à coroa e uma forma de manter os colonos interessados na conquista de novas terras, mas resultava na escravização dos nativos.
No caso de Cabrilho, foi-lhe atribuído o direito a terras agrícolas e minas, e o seu sucesso na mineração de ouro na Guatemala fez dele um dos conquistadores mais ricos. Os negócios de Cabrilho eram em terra e no mar, pois tinha um estaleiro onde construia embarcações, e em qualquer dos casos a sua riqueza dependia do trabalho escravo.
Nas Honduras, por exemplo, Cabrilho separou as famílias nativas, enviando os homens para as minas em busca de ouro e para a floresta para recolher as madeiras necessárias à construção naval, enquanto as mulheres e as raparigas foram entregues aos seus soldados e marinheiros, presumivelmente como escravas. Segundo o seu biógrafo Harry Kelsey, Cabrilho casou com uma indígena e teve vários filhos, incluindo pelo menos três raparigas. Mais tarde, casou com Beatriz Sanchez de Ortega, filha de um rico comerciante de Sevilha. A mulher acompanhou Cabrilho na Guatemala e deu-lhe dois filhos, que foram os seus herdeiros.
Em 1539, Francisco de Ulloa, que tinha sido contratado por Cortés, descobriu a Península da Baixa Califórnia e o Golfo da Califórnia, ou Mar de Cortez (o piloto Domingo del Cortez). Estas viagens provaram que a Península da Baixa Califórnia não era uma ilha, mas sim ligada ao continente e rodeada de água por um golfo (o Golfo da Califórnia) e pelo Mar do Sul (o Oceano Pacífico).
Em 1542, o novo vice-rei da Nova Espanha, Antonio de Mendoza y Pacheco, incumbiu Cabrilho de dar continuidade à abortada expedição de Francisco de Ulloa e encontrar um caminho para a China, uma vez que na época a extensão total do Pacífico Norte era desconhecida, ou encontrar o mítico Estreito de Anián, ou Passagem Noroeste, que ligava o Oceano Pacífico à Baía de Hudson.
Cabrilho largou amarras de Navidad (atual Barra de Navidad), na costa Oeste do México, a 27 de junho de 1542 com três navios: o galeão El Salvador de 200 toneladas e navio-chefe, La Victoria, um galeão mais pequeno e a fragata de velas latinas e vinte e seis remos San Miguel. A tripulação era formada por marinheiros, soldados, nativos escravizados, comerciantes e um padre.
Navegou para Norte e, três meses depois, alcançou a Baía de San Diego, tornando-se o primeiro europeu a desembarcar no que é atualmente o Estado da Califórnia. Desanimado pelo mau tempo, Cabrilho decidiu passar o inverno nas Ilhas do Canal, mas caiu e partiu uma perna durante um conflito com uma tribo indígena, e morreu devido a complicações a 3 de janeiro de 1543.
Após a morte de Cabrilho, a tripulação navegou novamente para norte, desta vez sob a liderança de Bartolomeu Ferrer, mas os ventos fortes do inverno e a escassez de mantimentos obrigaram-nos a regressar ao México. Embora os contemporâneos de Cabrilho tenham considerado a sua expedição um fracasso, os futuros exploradores espanhóis utilizaram os registos de Cabrilho para navegar melhor pelo Pacífico. A presumível origem portuguesa de Cabrilho levou a comunidade portuguesa da Califórnia a criar uma dezena de Clubes Cívicos Cabrilho, que oferecem anualmente bolsas de estudo a jovens lusodescendentes.
Por outro lado, a comunidade portuguesa de San Diego promoveu durante anos, em finais de setembro, um festival comemorando a chegada de Cabrilho à baía desta linda cidade californiana. Era eleita a Miss Cabrilho e o prémio incluia uma viagem da eleita a Portugal e ser recebida pelo presidente da República. Foram eleitas 56 misses desde 1963, a última das quais Marlaena Camacho, em 2019. Em 2020 o concurso foi cancelado devido à pandemia de covid e não parece que tenha sido reatado.
Outra atração do Festival Cabrilho era a reconstituição do desembarque do navegador na réplica do galeão San Salvador construído em 2025 por iniciativa do Museu Marítimo de San Diego, com o navegador personificado por um membro da comunidade portuguesa, mas já ninguém se preocupa com isso.
A preocupação das autoridades americanas em apoiar a teoria da origem espanhola de Cabrilho contribuiu para o desinteresse da comunidade portuguesa em celebrar as origens portuguesas do navegador, o que faz sentido. Contudo, anos atrás essa questão era levada muito a sério e a estátua de Cabrilho existente em San Diego chegou a ser raptada.
A ideia de uma estátua de Cabrilho partiu de Walter G. Smith, editor do jornal San Diego Sun. A Ordem do Panamá, um grupo cívico de San Diego, reviveu a ideia em 1913, quando da criação do Parque Nacional Cabrilho pelo presidente Woodrow Wilson, mas desistiu perante os montantes envolvidos.
Em 1939, António Ferro, jornalista e político que foi o grande dinamizador da política cultural do Estado Novo (regime de Salazar), considerou que, uma vez que Cabrilho era português, Portugal podia oferecer a sua estátua à Califórnia e ficou assente que seria exposta na Exposição Mundial de New York (1939) e Exposição Internacional Golden Gate em San Francisco (1940).
O governo português incumbiu o escultor português Álvaro DeBré de fazer a estátua, mas como não havia muito tempo o artista converteu em Cabrilho uma estátua de Diogo Cão destinada a Luanda.
Na sua famosa autobiografia (“Never Backward”), o português Lawrence Olivier (natural do Pico), recordou que, em março de 1939, recebeu uma carta de J.C. Valim, secretária do House Committee of Portugal, pedindo-lhe para angariar fundos para trazer a estátua para a Feira Mundial.
Mas a estátua chegou tarde para ser exposta em New York e os caixotes viajaram então para San Francisco, mas também chegaram tarde para a exposição da Golden Gate. Os caixotes foram então entregues ao governador da Califórnia, Colbert Olson, e foram armazenados em San Francisco.
Nessa altura, recordou Lawrence Olivier, correu na comunidade portuguesa o boato de que os espanhóis tinham raptado a estátua de Cabrilho.
Entretanto, o senador estadual Ed Fletcher, de San Diego, apresentou uma proposta de lei para que a estátua fosse para San Diego, onde chegou em 1940 e ficou vários anos à guarda da Marinha.
Em 1946, o Portuguese Social and Civic Club reviveu a celebração do desembarque de Cabrilho e em 1948 a escritora Winnifred Davidson sugeriu a colocação da estátua no Parque Nacional Cabrilho.
Em janeiro de 1948, o mayor de San Diego, Harley Knox, pediu ao Serviço Nacional de Parques que opera o Parque Nacional Cabrilho para transferir a estátua, que foi finalmente inaugurada a 28 de setembro de 1949 com discurso proferido por Manuel Rocheta, chanceler da embaixada de Portugal em Washington. Mas a estátua original de Cabrilho construída por Álvaro DeBré já deixou San Diego. Com o tempo, o clima marítimo e o clima de Point Loma erodiram a estátua a ponto da maioria dos detalhes apresentar desgastes visíveis.
Nessa altura, financiado por uma generosa doação de Marian Reupsch, residente em San Diego, o escultor português João Charters Almeida esculpiu uma réplica exata da estátua original numa pedra mais resistente, que viajou 7.000 milhas na corveta João Coutinho até Point Loma e foi inaugurada em 1988 pelo embaixador de Portugal João Pereira Basto. Quanto à estátua original, a de Álvaro DeBré, foi posteriormente restaurada e colocada em Ensenada, no México, onde continua a comemorar a viagem de Cabrilho. E em Montalegre, no largo junto à câmara municipal, há também uma estátua de Cabrilho honrando a sua possível naturalidade barrosã.
Morreu Manuel de Portugal
Manuel de Portugal, que foi durante anos colaborador do Portuguese Times, faleceu dia 29 de setembro de 2025, em Lisboa, aos 96 anos.
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa apresentou condolências à família numa nota publicada no site oficial da Presidência e lembrou que Manuel de Portugal foi um “conhecido cronista político na imprensa semanal e diária dos finais dos anos setenta e início dos anos oitenta” e as suas crónicas “conhecidas pelo estilo crítico e emotivo, marcaram o conturbado período pós-revolução em Portugal”.
Manuel de Portugal era o pseudónimo de Henrique Maria Cordeiro de Penha Coutinho, nascido em Lisboa a 1 de outubro de 1928 e as suas crónicas marcaram o período do PREC – Processo Revolucionário em Curso em Portugal, o período de instabilidade política e social que se seguiu ao 25 de abril de 1974. Começou por escrever no Tempo, semanário fundado dois meses depois do golpe spinolista de 11 de março de 1975 e que chegou a vender 120.000 exemplares. O artigo de Manuel de Portugal saia na terceira página e era o mais lido pelo tom irreverente e anticomunista.
Quando do surgimento do Jornal de Fall River, em 1975, António Alberto Costa, ao tempo dono e diretor do Portuguese Times, enfrentou a concorrência assegurando a colaboração de Manuel de Portugal.
Nesse tempo, eu tinha trocado o Portuguese Times pela concorrência, sou da fundação do Jornal de Fall River (atualmente O Jornal e só em edição online), mas isso não impediu que mantivessemos sempre excelente relacionamento, para o que contribuiu o facto de termos amigos comuns, o casal João e Teresa Nunes, de Dartmouth, que eram os procuradores de Manuel de Portugal nos EUA.
Manuel de Portugal acabaria por deixar de colaborar no Portuguese Times, mas tal como no Tempo e no Jornal da Madeira, marcou uma época.



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