“Fraco consolo o diário para um escritor. A sua voz não tem onde nem quando, nem como – apesar de continuar por dizer aquilo que ele, escritor, diria como mais ninguém”.
(pág. 46)
É certo e sabido que a diarística portuguesa tem, em Miguel Torga, um dos seus expoentes máximos: 16 volumes publicados entre 1941 e 1993. Nesta matéria, Vergílio Ferreira e José Saramago são também nomes sonantes. Mas há um outro escritor que, em termos de qualidade de escrita, em nada lhes fica atrás e que, infelizmente, continua mal connu: o açoriano Fernando Aires (1928- 2010), autor de apenas cinco Diários (Era Uma Vez o Tempo), mas que valem por toda uma literatura.
O diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.
Vem isto a propósito de um livro que me forneceu horas de apetecível leitura: Novas Fases da Lua (Publicações Dom Quixote, 2025), de João de Melo, autor de uma obra que engrandece e dá luzimento à literatura portuguesa.
Quem escreve, escreve-se. Novas Fases da Lua é uma obra importante, por três motivos. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reações de João de Melo sobre coisas, acontecimentos e pessoas de um tempo e de um lugar (2017-2024). Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspetos relacionados com alguns eventos que marcaram o país e o mundo, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos põe em contacto com o estilo do autor que continua a escrever com sensibilidade, emotividade, elegância narrativa e apuro literário, esmerando-se, ainda e sempre, no cultivo da língua de Camões.
Atentíssimo ao que se passa à sua volta, e dotado de grande sentido crítico, João de Melo envereda pela reflexão. Em tudo o que está neste livro, dá-nos ele matéria para pensamento, ou seja, pretextos para análise, reflexão, maneiras de sentir e ângulos de observação, sem nunca descurar uma profunda afirmação humana. Ele (d)escreve o quotidiano pessoal e a sua relação com os outros; discorre sobre os seus livros, a sua condição de escritor e a construção literária em que está envolvido (por exemplo, as fase embrionárias daquelas que viriam a ser as obras Livro de Vozes e Sombras (2020) e Longos Versos Longos (2023); fala sobre autores e leituras; tece considerações sobre viagens (no espaço nacional, Açores, Espanha, onde cumpriu trabalho diplomático); retrata eventos literários e oficiais; festeja a amizade; não se deslumbra com festas (sobretudo as natalícias); analisa e comenta atos eleitorais; critica medidas governamentais; questiona o fluir do tempo, a velhice que espreita, a doença que o assalta…
Acima de tudo, o escritor reage ao desconcerto do mundo: teme obscurantismos e retrocessos históricos, nomeadamente o crescimento de partidos populistas e as derivas autoritárias da extrema-direita; denuncia todas as guerras, sobretudo a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o acinte de Israel e a barbárie contra o povo palestiniano de Gaza; acusa os ditadores – os de ontem e os de hoje: Stalin, Salazar, Assad, Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un, Bolsonaro, Erdogan, Lukashenko, Nicolás Maduro, Rodigo Durtere, Bashar al-Assad, Trump, entre outros; insurge-se e contra os abusos sexuais perpetrados por elementos do clero; desconfia das bem-aventuranças do Brexit; preocupa-o o aquecimento global, a desagregação da Europa, as injustiças sociais, a fome, o genocídio, a fuga de migrantes e refugiados de guerra que morrem afogados no Mediterrâneo…
O que mais gostei deste livro? A maneira como João de Melo olha os outros, ele que tem 50 anos de escrita publicada e é autor de mais de 30 livros, repartidos por diversos géneros.




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