A Última Margem: um canto pela paz

by | Oct 8, 2025 | Raízes e Horizontes

A Última Margem: um canto pela paz

 Acabámos de celebrar o Dia Mundial da Paz, a 21 de setembro. Nesse dia, o mundo acordou como quem segura um vaso de cristal em mãos trêmulas. A paz parecia esse vaso frágil onde cabiam todas as sementes do futuro, e que, se caísse, não se recomporia. Fomos jardineiros de um campo devastado, com apenas aquele instante para lançar sementes de ternura, compaixão e diálogo. O tempo, rio que nunca espera, lembra-nos que, a cada segundo, nascem guerras, mas também podem nascer reconciliações.

Nesse dia, a humanidade inclinou-se, pouco, muito pouco para a paz, num gesto de esperança, como quem prende a respiração à espera de um milagre. A bandeira da paz agitou-se tenuemente entre ruínas de guerra, nos corredores do poder e nos corações feridos de povos divididos. António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, recordou que “o nosso mundo em guerra clama por paz… Vidas estão a ser despedaçadas, infâncias extintas, a dignidade humana descartada. Temos de silenciar as armas. Pôr fim ao sofrimento. Construir pontes. E criar estabilidade e prosperidade”. As suas palavras ressoaram como trovão numa tempestade antiga demais que continua a ecoar no presente.

A guerra, escultora cruel, talhou cicatrizes na terra, gravou memórias em chamas, despedaçou casas, transformou vizinhos em estranhos e irmãos em inimigos. Onde caíram bombas, não se seguiu o silêncio, mas os gritos, a poeira, o sangue, o exílio e a orfandade. Cidades cheias de riso tornaram-se mausoléus de arrependimento. Não apenas se perderam vidas: perdeu-se confiança, perdeu-se a promessa de convivência.

Nesse Dia Mundial da Paz, neste inacreditável ano de 2025, também nos lembrámos da outra guerra, menos visível, mas não menos letal: a guerra dentro das nações, entre ideologias e cidadãos.  O ódio sussurrado, a mentira repetida, a palavra usada como lâmina, a desumanização do outro. Quando uma sociedade ousa chamar menos humano a quem nascera diferente, a paz começa a morrer.

Foram evocados outros apelos. Relembramos palavras de Oscar Arias Sánchez, Nobel da Paz, dizendo-nos que “a paz consiste, em grande parte, no facto de a desejarmos com toda a alma”.  As de Elie Wiesel advertindo que “a guerra não deixa vencedores, apenas vítimas”.  E Martin Luther King Jr. o qual insistiu até à morte que a não-violência “não é passividade estéril, mas uma força moral poderosa, capaz de gerar transformação social”. Essas vozes, reunidas, recordaram-nos que a paz é urgente, é possível, mas exige coragem.

A poesia também nos deu o seu testemunho. Maya Angelou proclamou que “a palavra é Paz. É agora alta. É mais alta do que a explosão das bombas”. Sara Teasdale convidou-nos a imaginarmos um futuro onde “um dia viriam as chuvas suaves e o cheiro da terra… e ninguém saberia da guerra, ninguém se importaria quando tudo terminasse”. Versos que não negam a devastação, mas oferecem esperança: a paz pode soar mais alto do que as armas, se tivermos coragem de a escutar.

E, no entanto, percebemos como a guerra não se limita a fronteiras longínquas: também desfaz intimidades internas. Palavras tornaram-se projéteis, a raiva germina-se em ódio, e mesmo nesse Dia da Paz, metade de um país chamou traidora a outra metade. Nos Estados Unidos, como em outros lugares, levantam-se vozes a semear divisão, transformando medo em política. Não houve balas, mas houve feridas: confiança corroída, laços quebrados, guerras de palavras que se converteram em guerras de almas.

O que precisa acontecer ficou claro: era necessário silenciar armas e desarmar corações. António Guterres apelou à luta contra o racismo, a desinformação e a desumanização, pedindo que falássemos a linguagem do respeito. Paz não era algo a esperar como a chuva: tem de ser semeada, regada, protegida.  É urgente que a paz seja um mar suave ao amanhecer: céu lilás, ondas a sussurrar na areia, sem explosões, sem sirenes, apenas o sopro do vento e gaivotas ao longe. Risos de crianças sem medo, mãos que se apertavam para lá de fronteiras, para lá de diferenças.

Em 2025 o Dia Mundial da Paz foi vivido numa verdadeira encruzilhada. Sabemos muito bem que um caminho nos levará ao abismo; o outro, a um horizonte sereno. O apelo que deve ser universal, terá de começar no singular: em cada coração, em cada gesto, em cada palavra. Todos sabemos que a paz não pode ser apenas decretada em tratados; tem de nascer na forma como nos falamos, na escolha de abrir portas em vez de erguer muros, na capacidade de amar o vizinho — mesmo quando não temos, à primeira vista, qualquer semelhança.

A 21 de setembro fomos lembrados, ainda mais uma vez, de que a paz não é utopia, mas a última margem possível antes do abismo. Silenciar armas, cuidar feridas, erguer pontes: essa será sempre a nossa tarefa comum. Porque, onde houver paz, mesmo frágil, haverá esperança. E pela esperança, continuamos a viver.

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