À magia vinícola

by | Nov 5, 2025 | Crónica da Califórnia

Neste Hemisfério Norte a acolher-nos e a moldar-nos a vida cá no planeta que habitamos, à medida que setembro chega, aos poucos e poucos, os ares mudam, os dias mingam, o tempo arrefece, até o mar embravece, mas mansinho permanece este conforto que me aquece e acalma a alma cá por dentro. Privilegiado em ter nascido ilhéu num airoso berço de pedra queimada convidando a vinha a espalhar-se pelos seus empedrados contornando curraletas a perder de vista, setembro conforta-me sempre o íntimo com aquele aprazível consolo do cheirinho a vinho novo. Muito contribuía para a alegria do nosso povo e eu sou testemunha disso. Cresci com os embriagados prazeres que este mês trazia às gentes do meu lugar no incansável preparar da sua bela pinga. Os meus pitorescos Biscoitos, por esta altura do ano, cheiravam que consolavam a uva madura pedindo para ser apanhada, esmagada e depois escorrida em delicioso vinho doce da prensa para os barris, fazendo a minha gente feliz. Era assim a trabalheira suada na azáfama das vindimas – qualquer coisa de se lhe tirar o chapéu.

Não admira, por conseguinte, que setembro me mexa sempre com aqueles delicados cordelinhos da saudade colada ás tais gratas recordações fazendo-me recuar facilmente aos rústicos atalhos da minha longínqua infância, tão rica em episódios brindados à saúde do bom vinho. Logo no despertar da meninice comecei a aperceber-me do trabalho intenso que o laborioso pessoal da minha formosa freguesia tinha para que a vinha produzisse bagos da melhor qualidade possível. A fama do vinho de cheiro dos Biscoitos, nesse tempo, ia longe por se tratar da bebida comummente servida à mesa do povo e eram então poucas as pessoas que não tinham um pedacinho de terra entregue a esse prazer de ver uma videira crescer. Pelo chão, rastejando, ou subindo às latadas, dava gosto apreciar as uvas dependuradas em cachos amadurecendo diante dos nossos olhos deliciados, para não dizer esfomeados. Comer uvas com o olhar acontecia-me, amiúde, em miúdo, tal como me aconteceu, recentemente, agora já grisalho graúdo, ao visitar o Museu do Vinho, nas curtas férias gozadas no torrão que me viu nascer.

Foi uma visita feita quase à última da hora, mas que deu bem para saciar o apetite de provar a magia típica desse convidativo lugarinho que também me viu crescer orgulhoso da sua tradição vinhateira. Nada se lhe compara na festeira Ilha Terceira. Hoje, já não é tanto apenas o vinho de cheiro. O branco foi-lhe ganhando terreno, contudo nenhum néctar amacia melhor a garganta exigente dum sublime bebedor como o seleto verdelho. Trata-se, na verdade, de um vinho suave e sedutor. Resistir-lhe, nunca foi fácil. Fazê-lo com superior qualidade exige empenho acrescido e amor redobrado pelo lento amadurecer da uva, do cacho para o copo. Bem amadurecida na minha mente permanece essa ampla visão histórica da vinicultura implantada no meu cantinho natal muito por o mérito do lendário senhor Chico Maria Brum, dinâmico empreendedor dessa abnegada labuta que fez da vindima festa inseparável do que é ser-se um bom filho dos Biscoitos. Para sempre coladas à minha retina ficarão essas vívidas imagens dos cestos de duas asas cheios de uvas prontas a descerem ao lagar da nossa saudade – perenemente deleitada com doces memórias desse tempo que já lá vai.

E eu que tive a oportunidade de lá ir no verão, confesso ter-me deliciado em revisitar precisamente esse afamado Museu do Vinho embelezando o meu berço e tornado paragem obrigatória no roteiro turístico da Ilha. Trata-se dum histórico empreendimento já de quatro gerações, hoje à conta do neto do senhor Chico Maria, o Luís Brum, que se mantém claramente orgulhoso de poder administrar o património construído pela família e me “embrulhou” gentilmente uma garrafa de Verdelho Meio Seco inspirando-me agora estas rimas com que vos brindo… à magia vinícola do meu pitoresco lugar.

 

A vida duma videira,

Generosa de raiz,

Pode parecer rasteira,

Mas faz o mundo feliz.

 

Cresce rentinha ao chão,

À espera da ajuda

Duma pedra ou tanchão,

A ver se a sorte muda.

 

Mais erguida agradece

E a uvinha também;

Só que, mal amadurece,

A bicharada lá vem.

 

Melrinhos cheios de fome,

Ratinhos e ratazanas,

Mas quem mais bagos lhe come,

São as boquinhas humanas.

 

Bocas e mãos à vindima,

Vamos à uva que resta;

Toda a gente se anima,

Vindimar é uma festa.

 

Na adega do meu povo,

Eu fico fora de mim;

Bago doce, vinho novo,

Alegria sem ter fim.

 

 

Tudo graças às videiras,

Generosas, asseadas,

Sobrevivendo rasteiras

Ou subindo às latadas,

Dedicam vidas inteiras

Ao prazer das patuscadas.

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