À beira do impensável: mito, símbolo e a normalização do desastre

by | Nov 12, 2025 | Discurso Portinglês

Há oito anos, li The Future of War: A History (2017), de Lawrence Freedman. Retirei-o agora da estante, e recomendo-o pela sua pertinência face à ameaça militar do presidente da Federação Russa à Europa e à segurança global. No controlo do poder bélico russo, Putin procura reconstruir o império tirânico da antiga União Soviética, recorrendo a estratégias que combinam força bruta, manipulação simbólica e ambiguidade tática.

O ataque russo à Polónia, ainda que limitado, não foi apenas um ato militar. Reflete perceções humanas sobre risco, poder e memória. Mostra como alianças reinterpretam a ameaça de destruição mútua como algo trivial, articulando o perigo extremo com mito, símbolo e identidade. A guerra, neste contexto, deixa de ser apenas uma realidade geopolítica para se tornar também um fenómeno cultural e psicológico, onde o impensável é lentamente absorvido pela rotina discursiva.

Durante décadas, a guerra nuclear foi tratada como o limite absoluto da hecatombe universal. Hoje, a retórica diplomática e os comunicados oficiais transformam o incompreensível em rotina. A destruição, antes conceito simbólico e remoto, aproxima-se do quotidiano, banalizando o risco e corroendo a perceção de gravidade. Paradoxalmente, isso enfraquece o efeito dissuasor que deveria ser absoluto. A familiaridade com o perigo extremo gera uma espécie de anestesia coletiva, onde o medo deixa de mobilizar e passa a ser tolerado como parte do cenário.

A memória coletiva funciona como lente interpretativa. Na Polónia, cada hesitação internacional é filtrada por narrativas transgeracionais de invasão e ocupação. A experiência histórica molda a resposta emocional e política ao presente. Nos aliados ocidentais, condicionados por conflitos distantes e pelo receio da escalada nuclear, impera uma prudência calculada. O silêncio e a contenção não são apenas estratégia. Revelam a tensão entre memória histórica e a noção contemporânea do Armagedão. A linguagem diplomática torna-se um exercício de equilíbrio entre o reconhecimento do risco e a tentativa de o domesticar.

Os símbolos têm papel central. Bandeiras, fronteiras e comunicados tornam-se instrumentos de poder e legitimação. Cada ação militar ou gesto diplomático é interpretado como parte de um enredo emblemático, moldando identidades nacionais e visões internacionais. A guerra converte-se em palco onde o mito da coragem coletiva é ensaiado, reiterado e, por vezes, questionado. A teatralidade dos conflitos contemporâneos revela uma dimensão performativa, onde os protagonistas encenam papéis que oscilam entre a bravura e a contenção.

Freedman oferece uma perspetiva crítica relevante. Mostra como os futuristas militares falharam ao confiar em modelos de guerras rápidas e tecnológicas. A obsessão por “golpes fulminantes” — ofensivas terrestres, ataques nucleares ou ciberataques — ignora a realidade de conflitos prolongados, insurgências e guerras híbridas. As fronteiras entre guerra e paz, entre o militar, o civil e o criminal, tornam-se difusas, aumentando a incerteza estratégica. As sociedades vivem sob tensão entre expetativa e realidade, entre o que se promete e o que se concretiza.

O colapso da dissuasão, a fragilidade das alianças e a banalização da guerra nuclear são frequentemente ignorados. O saber sobre destruição total continua a funcionar como alerta, mas a identidade coletiva dos Estados aliados enfrenta desafios inéditos. A crença na proteção garantida por alianças formais é posta à prova. O artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte — promessa de defesa mútua — permanece no papel, enquanto a perceção pública oscila entre confiança e dúvida. Memória, identidade e símbolo produzem uma pressão psicológica que se move entre ansiedade e resignação. A confiança institucional é corroída pela ambiguidade estratégica e pela repetição de gestos que parecem insuficientes.

Refletir sobre este episódio exige reconhecer que não se trata apenas de cálculo militar ou dissuasão, mas de um fenómeno psicológico e cultural. A transformação da catástrofe em narrativa — a adaptação da mente coletiva ao perigo existencial — revela uma negociação contínua entre mito, símbolo e realidade. O impensável deixou de ser extraordinário, tornando-se parte da memória social e do imaginário coletivo. A normalização do risco extremo é, em si, um sintoma da crise contemporânea de sentido.

Esta crise exprime tanto a fragilidade das estruturas políticas como a resiliência simbólica das sociedades. A leitura desta realidade exige atenção às camadas invisíveis que moldam comportamentos: memória, símbolo, mito e identidade. O mundo permanece à beira do impensável, mas habituou-se a esta condição numa era em que o risco extremo se tornou narrativa e a destruição potencial, rotina simbólica.

A consciência coletiva, entre o alerta e a apatia, continua a negociar o seu lugar num tempo em que o desastre deixou de ser exceção e passou a ser possibilidade quotidiana.

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