Em novembro de 2023, fui a Montréal, Canadá, participar no colóquio “A Comunidade Portuguesa do Quebeque – Uma Visão do Passado, Presente e Futuro”, comemorativo do 27º aniversário do jornal LusoPresse e do 10º aniversário do canal de televisão LUSAQ TV, a convite de Norberto Aguiar, alma daqueles dois órgãos de comunicação social. Foi o meu primeiro contacto ao vivo com uma comunidade da diáspora açoriana, experiência inesquecível, como disse numa crónica publicada na altura. Contribuiu muito para a memória positiva desse colóquio o convívio, a qualidade dos intervenientes nos diversos painéis, quer os que foram de Portugal quer os elementos da comunidade portuguesa do Canadá, a importância dos temas propostos e o modo como foram tratados, o que foi comprovado pelos debates a que deram origem.
No primeiro dia, houve dois painéis que decorreram em paralelo, um com o título “A Mulher na Comunidade” e o outro subordinado ao tema “A Juventude na Comunidade”. Após uma hesitação inicial, optei pelo primeiro, porque algum tempo antes tinha lido um texto sobre a mulher na nossa diáspora nos Estados Unidos. Segundo o autor, chegadas ao país de acolhimento, as mulheres açorianas adaptavam-se, normalmente, com mais facilidade do que os homens, porque revelavam uma capacidade de leitura mais perspicaz do novo mundo que as rodeava e, mais rapidamente, conseguiam organizar a vida, aproveitando, inteligentemente a seu favor, as possibilidades que o meio lhes proporcionava. Pensei, então, que seria interessante descobrir se algo de semelhante se verificava no Canadá.
No intervalo que se seguiu às sessões paralelas, Onésimo Teotónio Almeida, que fora assistir ao painel sobre a juventude da comunidade, disse-me que tinha ficado muito bem impressionado com todas as intervenções, particularmente com a apresentação que Michael Gouveia tinha feito do seu romance L’Héritier; a intervenção do jovem escritor tinha sido de muita qualidade e parecia-lhe que o livro valia a pena, pelo que ia manter-se em contacto com o autor.
Com o andar do tempo, as notícias sobre o romance foram-me chegando. A primeira, que o livro era interessantíssimo e valeria a pena traduzir para português e publicá-lo. A seguir, que já tinha encontrado tradutora para o texto. Pouco depois, que já tinha editora e, por último, em junho deste ano, que o romance tinha saído. Em setembro, quando nos encontrámos da sessão promovida pela Casa dos Açores, em Lisboa, integrada nas comemorações do centenário do nascimento do Prof. José Enes, o Onésimo ofereceu-me um exemplar de O Herdeiro, com tradução de Leonor Simas-Almeida. O livro está incluído na coleção “Comunidades Portuguesas”, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Tenho sempre entre mãos dois ou três livros, pelo que não iniciei imediatamente a sua leitura; dei-lhe uma volta rápida e pu-lo no monte a aguardar, mas foi pausa de pouca dura. A tentação era grande e, de vez em quando, lia um capítulo. Até que pequei no livro em leitura mais continuada e só parei no fim. Fiquei encantado.
O romance retrata a vida de alguém nascido na diáspora: os pais chegaram ao Canadá e um ano depois nasceu o primeiro filho. Como é comum na primeira geração nascida no país de acolhimento, o João, é o nome do protagonista, nasce num mundo português, numa “ilha” de cultura portuguesa, mais concretamente açoriana, rodeado pelo Canadá francófono por todos lados. Com a ida para a escola, vê-se num mundo mais vasto, em que “o francês era a língua comum que me abria ao resto do mundo, enquanto o português era uma língua especial, reservada à minha família e a algumas outras pessoas” (p. 19). E essa experiência de viver entre dois mundos culturais vai aparecendo, simultaneamente, como uma riqueza e uma dificuldade, o que, aliás, é uma situação típica dos que constituem a primeira geração nascida na diáspora. No caso do João, o caso agrava-se devido a sua enorme timidez que o impede de fazer amigos ao longo de toda a sua vida escolar, situação que se agravou na universidade.
A narrativa, por certo muito inspirada na biografia do escritor, como diz Onésimo Teotónio Almeida no prefácio muito informativo e esclarecedor, vai-se desenrolando nesta encruzilhada de dois mundos. João vai-se apercebendo das dificuldades da integração no país de acolhimento dos pais. Sintoma disso é até notório no nome que tem, João, que os não portugueses têm dificuldade em pronunciar. Pessimista inveterado, diz para consigo que até no nome que lhe deram teve azar. Para tentar superar tanta dificuldade, tanta adversidade junta, resolve e consegue ser um aluno brilhante ao longo de todo o percurso escolar. Fechado na sua solidão, sonha vencer na vida e pensa que o estudo será o caminho para lá chegar. O leitor, por seu lado, avançando na leitura do livro vai-se perguntando como será isso possível.
Curiosas são as páginas em que o herói do romance fala sobre futebol. A leitura dessas páginas mostra o lugar e importância que aquela modalidade desportiva, e particularmente a seleção nacional, tem na vida da diáspora. Para os portugueses espalhados pelo mundo tudo o que significa pertença a Portugal é vivido de um modo muito particular e o futebol tem um lugar privilegiado na vivência dessa ligação. As páginas sobre os jogos da seleção ensinam-nos imenso sobre o que é ser um português a viver no estrangeiro.
Recorrendo a uma formulação de Immanuel Kant (1724-1804), que marcou indelevelmente a história do pensamento, em síntese a Filosofia sempre procurou responder a uma só pergunta: “o que é o homem?”. A literatura, por sua vez, foi, ao longo da sua história, uma reflexão constante sobre o homem e, por isso, se compreende que o grande filósofo e homem de cultura que foi José Enes (1923-2013), cujo centenário do nascimentos acabámos de celebrar, tenha iniciado a sua participação no debate cultural escrevendo vários ensaios sobre literatura, e que Emmanuel Lévinas (1906-1995), o grande filósofo lituano-francês do século XX, tenha escrito que a sua introdução à Filosofia tinha sido feita na leitura dos clássicos da literatura russa do século XIX. Ora é nesta linha de pensamento que considero que o romance de Michael Gouveia nos ensina mais sobre a emigração portuguesa, concretamente açoriana, do que os muitos estudos de base científica publicados sobre esse fenómeno. Os emigrantes que encontramos em O Herdeiro, são gente de carne e osso, que ri, chora, trabalha, sonha e espera vencer. Mas a narrativa tem uma qualidade admirável: o autor vai descrevendo o que lhe acontece e refletindo sobre esse acontecido, o que permite ao leitor ver “o que é homem” que, como referi, é o objeto da filosofia e da literatura.
Duas notas finais. A primeira: acima falei de um texto que afirmava que, na diáspora, em comparação com os homens as mulheres açorianas em geral se adaptam mais rapidamente porque, com mais facilidade, interpretam o que as rodeiam no país de acolhimento. No romance de Michael Gouveia, a mãe do João é disso um bom exemplo: nada do que se passa portas adentro ou fora de casa lhe escapa; nela do filho encontra, em todas as circunstâncias, uma boia de salvação.
A segunda nota: Leonor Simas-Almeida é autora da excelente tradução de O Herdeiro. O respeito que teve pelo tom das diversas estórias que compõem a narrativa valorizou de sobremaneira a publicação do romance em português.




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