Há lugares onde o céu desce em silêncio, e a terra se eleva em oração. Onde o incenso não apenas perfuma o ar, mas acende as memórias. Assim é a pequena cidade Gustine, no estado da Califórnia, no calor do fim de cada verão. Com cada ano, esse pequeno santuário transforma-se em altar da saudade, do reencontro e da fé. A Festa de Nossa Senhora dos Milagres não é apenas um rito — é um murmúrio ancestral que atravessa oceanos e gerações, envolvendo-nos no manto azul da pertença.
Para muitos de nós, vindos em criança dos Açores com os bolsos cheios de ilhas e os olhos famintos de horizonte, a Festa de Gustine nos anos 70, 80 e 90 era uma revelação. Os nossos pais, peregrinos do silêncio, levavam consigo as suas preces, os seus calos, as suas memórias e as suas esperanças. Viajavam de Tulare, San Jose, Hanford, Sacramento, Artesia — numa romaria movida não por distâncias, mas pela saudade. Em Gustine, não buscavam apenas a Virgem — buscavam a si mesmos.
Lembro-me bem que os meus pais participavam todos os anos, desde os primeiros passos da nossa vida americana, no início da década de 1970. Era mais que tradição — era o retorno da alma ao seu ponto de origem. Após a reforma, o meu pai redescobriu a alegria das festas, encontrando nelas um fio invisível que o ligava ao passado. Gustine era a sua predileta. Nossa Senhora dos Milagres tinha sido sempre farol em Terceira — mas aqui, na Califórnia, tornou-se porto de abrigo da nossa condição de emigrantes.
Foi ali, em 2002, que o meu pai participou na sua última festa. Não ficou até à segunda-feira, como era hábito — partiu silenciosamente no domingo. E sabíamos que algo havia mudado. Uma semana depois, partiu para a eternidade. Desde então, Gustine tornou-se altar do meu luto e da minha gratidão — última estação de um caminho de fé e pertença.
Recordo as procissões à luz de velas — rios dourados serpenteando pelas ruas, cada chama uma promessa sussurrada: lembrar, agradecer, pedir, acreditar. Recordo a cantoria — versos astutos dançando no ar como se os Açores estivessem suspensos sobre o vale de São Joaquim. As bandas, os desfiles, os touros, as multidões com rostos familiares — como se a rua fosse uma freguesia trasladada.
Falar de Gustine é falar de um dos pilares da alma açoriana na Califórnia. Não é a única festa, mas é uma das mais luminosas. Ali, o sagrado e o profano entrelaçam-se com reverência. A memória não é lamento — é hino. A identidade não se esconde — desfila com orgulho.
A Festa de Nossa Senhora dos Milagres é mais do que uma celebração — é um arquivo vivo. Um lugar onde crianças erguem bandeiras maiores que o seu corpo, onde os velhos contam contas de um rosário que cruzou o Atlântico, e onde todos nós — emigrantes, filhos, netos, visitantes — acabamos por nos redescobrir. Aprendemos que o catolicismo pode ter um sotaque açoriano, que a América pode saber a massa sovada, e que a Califórnia é mais rica quando acolhe as nossas preces e procissões. Num tempo em que a globalização ameaça diluir raízes, a Festa de Gustine é resistência: um ato de afirmação cultural, espiritual e afetiva. É dizer: existimos. Cantamos. Continuamos.
Estas celebrações não são apenas recordações — são sementes. Fortalecem a democracia multicultural da Califórnia. Nas ruas enfeitadas de Gustine ressoam mais do que ladainhas — ressoa o sonho de uma diáspora que não esquece.
A fé aqui é vivida — entre gerações, entre línguas, entre mundos. Para a diáspora açoriana, Nossa Senhora dos Milagres não é apenas a mãe do divino — é a mãe do emigrante. Aquela que entende o exílio e acolhe o coração desenraizado.
Nos programas da festa, como o deste ano, vê-se esse grande labor do amor. As coroas brilham, sim — mas é nas pessoas que repousa o verdadeiro esplendor. E pelas suas mãos, Gustine transforma-se em catedral de saudade, de memória, de esperança.
Que continuemos sob o seu manto. Que as velas voltem a ser acesas por jovens que falam inglês, mas ainda rezam com alma portuguesa. Que a música ecoe, que os touros corram, que as orações subam, e que a comunidade — ah, a comunidade — se abrace como sempre. Como precisamos de nos abraçarmos! Porque Gustine, ainda que tenha nome estrangeiro, tem coração açoriano. Ali, os milagres não são apenas pedidos. São vividos.
Ainda bem que algumas luzes não se apagam. Ainda bem que se tornam em constelações.



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