Festival de Jazz de Newport inspirou o Festival de Jazz de Cascais, saudades da Sara Tavares, e Paul Gonsalves e Horace Silver as glórias cabo-verdianas do jazz

by | Aug 6, 2025 | Cultura outros

Festival de Jazz de Newport e saudades da Sara Tavares

O jazz é a mais famosa música dos Estados Unidos, criada por negros mas tocada em clubes que os negros não podiam frequentar.

Hoje há mais de 800 festivais de jazz nos Estados Unidos e o mais famoso é o Newport Jazz Festival, iniciado há 70 anos em Newport, Rhode Island.

A edição 2025 do festival de Newport realizou-se dias 1, 2 e 3 de agosto no Fort Adams State Park, com vista para a Narragansett Bay e onde os presidentes costumavam passar as férias de verão (James Monroe, John Quincy Adams, Andrew Jackson, Martin Van Biren, Franklin Pierce, Chester A. Arthur, Dwight Eisenhower e Bill Clinton algumas vezes).

O festival de Newport, pioneiro no conceito dos festivais de música modernos, influenciou a música um pouco por toda a parte com o apelo a um público mais amplo, incluindo Portugal, onde há hoje 30 festivais de jazz (mais do que de fado), incluindo Cascais, Estoril, Figueira da Foz, Funchal, Coimbra, Seixal (dois), Viseu e Lisboa (dois).

O Newport Jazz Festival foi criado em 1954 pelo empresário de jazz George Wein apoiado financeiramente pela socialite Elaine Guthrie Lorillard e o marido, Louis Lorillard. Elaine Lorillard (1914-2007) era filha de uma cantora clássica e foi professora de piano. Casou com um empresário, vivia em Newport e, em 1953, ela e o marido entraram no bar que George Wein tinha em Boston e onde se ouvia jazz, e convidaram-no a organizar um concerto de jazz ao ar livre em Newport.

Com um donativo de $20.000 dos Lorillards, o primeiro Newport Jazz Festival teve lugar em julho de 1954, atraindo 11.000 espectadores. Os primeiros festivais tiveram lugar na propriedade de Louis e Elaine Lorillard, situada na Bellevue Avenue, atualmente chamada de Belcourt Castle e propriedade da família Tinney. Os Lorillards apoiaram o festival até 1961. O festival tornou-se um marco na história do jazz e influenciou a cena musical, apesar de desafios como a dificuldade de equilibrar a integridade.

 

Paul Gonsalves e Horace Silver, glórias cabo-verdianas do jazz

Dois dos mais famosos concertos de Newport foram do trompetista Miles Davis, um dos músicos mais inovadores da história do jazz, em 1955 com o seu solo no tema ‘Round Midnight’, e pela orquestra de Duke Ellington em 1956 na música ‘Diminuendo and Crescendo in Blue’, que incluia um solo de saxofone de Paul Gonsalves, que também ficou para a história e ao tempo contribuiu para revitalizar a carreira de Ellington.

Filho de cabo-verdianos, Paul Gonsalves nasceu em Brockton, Massachusetts, em 1920 e começou por tocar viola e música cabo-verdiana para a família. Cresceu em New Bedford e, na década de 1940, fez parte com outros cabo-verdianos da banda de Phil Edmund. Mas o seu primeiro compromisso profissional foi tocando saxofone-tenor na banda Sabby Lewis, período interrompido pelo serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial.

Depois da guerra, em 1946, Gonsalves voltou à banda de Sabby Lewis, mas pouco tempo depois mudou para as big band de Count Basie, onde se manteve quase três anos (1947-1949), depois Dizzy Gillespie (1949-1950) e por fim juntou-se a Duke Ellington, com quem permaneceria o resto da sua vida como solista de destaque em vários cenários ellingtonianos.

Gonsalves faleceu em Londres, aos 54 anos, a 15 de maio de 1974, após uma vida inteira de vício no álcool e nas drogas. Coincidentemente, a 18 de maio de 1974, faleceu de cancro no pulmão o trombonista Tyree Gleen, que tinha tocado com Lionel Hampton, Ellington e Louis Armstrong. E a 24 de maio de 1974 faleceu Duke Ellington, aos 75 anos, de cancro pulmonar. Durante alguns dias, Ellington, Gleen e Gonsalves estiveram lado a lado na mesma agência funerária de New York.

Gonsalves está sepultado no Cemitério Nacional de Long Island, em Farmingdale. É talvez o mais conhecido dos músicos cabo-verdianos que influenciaram significativamente o panorama jazístico e não é o único.

Outros músicos notáveis de ascendência cabo-verdiana contribuiram com as tradições musicais cabo-verdianas para as diversas sonoridades do jazz, caso de Paulo Pena, cantor, guitarrista e compositor nascido em 1950 em Hyannis e que se apresentou em 1969 em Newport. Pena misturou morna, flamenco e rock no seu maior sucesso, ‘Jet Airliner’, lançado em 1977 pela banda Steve Miller e cujos direitos o ajudaram a manter-se o resto da sua vida. Pena atuou com Frank Zappa, Jimmy Garcia, Jimi Hendrix e muitos outros, mas tinha graves problemas de saúde. Sofria de glaucoma congénito, sendo quase cego, e viria a falecer aos 55 anos, de complicações com diabetes e pâncreas. Outra celebridade é John Santos, mestre percussionista de ascendência cabo-verdiana e porto-riquenha nascido em San Francisco e figura proeminente do jazz latino. É homem super ocupado, além de músico, é escritor, professor do California Jazz Conservatory e membro da Smithsonian Institution.

E, claro, não pode ser esquecido Horace Silver, o nome artístico de Horace Ward Martin Tavares Silva, nascido a 2 de setembro de 1928 em Norwalk, Connecticut, e filho de John Tavares Silva, cabo-verdiano que era operário numa fábrica de borracha e talentoso tocador de violino e mandolim. Depois do trabalho, John Silva juntava-se ao irmão tocando mornas e coladeras, e despertou no filho o gosto pela música.

Horace Silver começou por ser saxofonista, mas trocou o saxofone pelo piano e tornou-se uma referência do jazz nas décadas de 1950-60, tocando com gigantes como Stan Getz, Miles Davis e Lester Young. Fundou os Jazz Messengers com Art Blakey e manteve-se sempre ativo em palco ou no estúdio até falecer a 18 de junho de 2014, em New York.

Estes e muitos outros músicos de origem cabo-verdiana demonstram a forte ligação entre a música cabo-verdiana e o jazz americano, e todos eles passaram pelo Festival de Newport que, em 1972, devido a violentos confrontos, foi transferido para New York com o nome de Newport Jazz Festival-New York. Em 1982, o festival retornou a Newport, continuando a ser realizado anualmente e alternando com New York. A partir de 1986, o festival passou a ser conhecido como JVC Jazz Festival, devido ao patrocínio da empresa. O Newport Jazz Festival não só celebrou o jazz, mas também promoveu a igualdade racial ao garantir um público não segregado, e lançou a carreira de muitos artistas notáveis. A primeira cantora gospel a apresentar-se em Newport foi Mahalia Jackson, em 1957 e 1958, que voltaria em 1970 ao lado de Louis Armstrong. Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Carmen McRae foram também lançadas em Newport. Apesar das alterações, o Newport Jazz Festival continua a ser um evento importante, celebrando o jazz e a música em geral, e mantém viva a sua rica história, sendo agora dirigido pelo baixista Christian McBride, que sucedeu a George Wein.

 

Festival de Newport inspirou o Festival de Jazz de Cascais

Newport inspirou festivais de jazz em vários países e um deles o festival de Cascais. Corria o mês de setembro de 1965 quando Luís Villas-Boas se lembrou de abrir numa rua de Cascais um clube dedicado “aos que apreciam e conhecem jazz”, conforme o próprio explicou à revista Flama por ocasião da inauguração deste espaço que viria a chamar-se Luisiana e era “decorado à semelhança dos de Nova Orleães” e por onde passaram grandes nomes do jazz. Alguns vieram propositadamente, como, em 1967, o quarteto do então jovem Charles Lloyd, com Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette, um autêntico feito para a época.

Um ano depois da abertura do Luisiana, em 1966, teve lugar em Cascais o primeiro grande concerto de jazz, realizado por nada menos do que o trio de Oscar Peterson, génio do piano natural do Canadá e de passagem por Lisboa para uma atuação no Cinema Monumental, e ao qual se juntou o lendário Gerry Mulligan, na época a passar a lua de mel em Portugal.

A importância do Luisiana ficou desde logo marcada pela possibilidade de encontro entre os jazzmen portugueses e estrangeiros, tendo sido uma autêntica escola para músicos como Rão Kyao, Zíngaro, Sarbib, Manuel Jorge Veloso, Canelhas e Bernardo Moreira. Em novembro de 1971, graças ao espírito empreendedor de Luís Villas-Boas, Cascais acolheu o primeiro Festival Internacional de Jazz realizado em Portugal, esgotando o Pavilhão do Dramático com cerca de 10.000 pessoas ansiosas por participar num evento ímpar. Tendo por base o modelo do prestigiado Festival de Jazz de Newport e o apoio do seu mentor, George Wein, foi possível apresentar um cartaz com nomes como Miles Davis, Ornette Coleman, Phill Woods, Dexter Gordon, Joe Turner e o sexteto Giants of Jazz, de que faziam parte Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Art Blakey, Sonny Stitt, Kai Winding e Al McKibbon.

Em 1974, Villas-Boas passou a contar com o apoio de Duarte Mendonça, o qual, sem saber, viria a continuar até hoje a herança e o legado do primeiro.

Decorridos 54 anos, o jazz teima em não abandonar Cascais e Cascais também não parece interessada em deixar de fazer ouvir o jazz a bem da cultura, do turismo e do prestígio alcançado internacionalmente. O festival agora chama-se Cool Jazz Fest e mistura jazz com fado e música brasileira, confundindo os puristas, mas agradando ao público.

Em 2025, o festival de Cascais prolongou-se por sete noites de 4 a 31 de julho no cenário do Hipódromo e outros locais com uma programação musical sofisticada e incluindo um jardim gastronómico e vinícola que celebrou as tradições culinárias portuguesas. O cartaz estrangeiro foi sobretudo britânico, incluindo Benjamin Clementine, que se estreou em Portugal no verão de 2015, ano em que editou o primeiro álbum, e desde então já regressou várias vezes. Na adolescência, Clementine viveu em Paris, tendo chegado a dormir na rua, até ter sido descoberto por uma pessoa ligada à música e gravou o álbum de estreia, “At Least For Now”, em 2015. Pelo caminho, o músico e compositor colaborou com os Gorillaz e Charles Aznavour e participou como ator nos filmes “Dune” (2021) e “Blitz” (2024), em cuja banda sonora também participa.

Os outros britânicos no cartaz foram Seal, nascido em Londres em 1963 (62 anos) e cujo verdadeiro nome é Olusegun Adeola Samuel, e a banda Erza Collective integrada por africanos. Do elenco português, uma das presenças mais aguardadas da edição deste ano do Ageas CoolJazz foi sem dúvida o rapper Slow J, também conhecido por João Batista Coelho, num concerto situado no Hipódromo Manuel Possolo e em que rendeu homenagem à sua amiga Sara Tavares, falecida em 2023.

Sara Alexandrina Lima Tavares nasceu em Lisboa a 1 de fevereiro de 1978 e foi criada em Almada pela avó. Era portuguesa de ascendência cabo-verdiana. Em 1990 venceu o concurso “Chuva de Talentos” do canal de televisão SIC cantando uma canção de Whitney Houston. Em 1994 foi apurada para representar Portugal no Festival da Eurovisão, tendo ficado em oitavo lugar. Prosseguiu a carreira de cantora e compositora tendo participado na versão em português europeu da música “God Help the Outcasts” do filme da Disney “O Corcunda de Notre Dame” e a Disney considerou essa versão a melhor versão pop internacional, excluindo a original. Sara cantava sobretudo música cabo-verdiana, visitou várias vezes os Estados Unidos e tive oportunidade de a entrevistar para o Portuguese Channel.

Porém, em 2023, chegou a notícia de que Sara falecera aos 45 anos, devido a uma doença oncológica prolongada, especificamente um tumor cerebral que lhe foi diagnosticado em 2009. Ela lutou contra a doença por vários anos, tendo inclusive interrompido a carreira por algum tempo devido aos tratamentos. Apesar de ter tido períodos de recuperação, a doença voltou a afetá-la, levando ao seu falecimento no Hospital da Luz, em Lisboa, a 20 de novembro de 2023.

Sara Tavares era filha de cabo-verdianos, tinha a tal inclinação natural para o jazz de que falámos e, numa das ocasiões em que a entrevistei, lembro-me de ter ouvido a alguém que se Sara Tavares tivesse nascido nos Estados Unidos podia ter sido uma nova Sarah Vaughan.

Por isso foi bonito o Festival de Jazz de Cascais ter agora lembrado Sara Tavares.

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