Mordidelas prementes   

by | Jul 30, 2025 | Crónica da Califórnia

Acordei mais do que sobressaltado, furioso comigo mesmo, por não conseguir voltar a pegar no sono ainda bastante antes do romper duma dessas tais estranhas madrugadas para esquecer. O relógio apontava para as duas e pique quando senti a picadela ardente dum provocante pesadelo fazer-me dar um pulo da cama para fora. Não sei como nem porquê o meu arreliado inconsciente, na sua esquisita sequência de associar coisas e loisas sem nexo, me arrastou para debaixo dos lençóis uma daquelas arrepiantes cobras equipadas com cuspo supostamente venenoso na ponta da sua assustadora língua. Deus me perdoe, porque a minha mulher já me perdoou o grito com que a espantei convencido de estar a lidar com o diabo da tal lendária serpente que tudo fez para tornar este atribulado mundo em que vivemos num feio inferno de tolas desavenças, quando nós, seus bons habitantes, bem preferiríamos poder disfrutá-lo apenas como um belo paraíso de cordial convivência. Tal não deixam os maus, que estragam isto tudo.

É longa a lista dessas desprezíveis criaturas, no dizer dos castiços velhotes lá do meu cantinho natal de há já mais de meio século, “gente reles que não presta para nada.” Ou então como dizia o Ti Manel Bicharedo quando deixava escapulir-se-lhe da boca a popular expressão sinónima desse curioso parecer, “gente que não vale a ponta dum corno.” Insulto mais degradante não podia haver para rebaixar quem não valia grande coisa, nesse tempo que já lá vai. Numa pacata terra de boa gente (assim gostávamos de pensar) como a nossa, não era fácil merecer-se tão torpe tratamento. Saindo-se dela para fora, porém, já a coisa mudava de figura, porque não faltava quem não prestasse nem escapasse à bem afiada maledicência pública. E quando digo maus, não me estou a referir aos mauzinhos, que de forma alguma devemos comparar ao pior do piorio associado à vil escumalha humana merecedora de repúdio universal.

Tudo isto me veio à mente incomodada pelo atual estado inflamado de tantas das nossas relações humanas, ampliadas nas querelas sociopolíticas, internas e internacionais, a deteriorarem-se perigosamente na tumultuosa era que atravessamos com conflitos de preocupante magnitude agravando-se sem apelo nem agravo. Dá a impressão que ninguém se entende, mas pior ainda é percebermos quando não se querem entender por mera burrice, uma das pechas mais irritantes no comportamento humano.  A ousadia de se chamar burro a um sujeito que se tem por inteligente não é pouca porcaria e pode, eventualmente, dependendo das circunstâncias, vir a dar cadeia. “Salazar É Burro E Não Tem Albarda.” Ainda estou para saber como é que a miudagem do meu tempo de escola primária se safava com este manhoso atrevimento rabiscado na capa das nossas velhas sebentas nessa era negra do fascismo, depois afugentado lá do nosso velhinho Portugal pelos valentes capitães do abril mais florido da minha mocidade.

Viver sobre o jugo tirano duma ditadura fascista, cria calos e deixa marcas para sempre inapagáveis da nossa memória coletiva. O mesmo acontece debaixo das garras dum ditatorial regime comunista, onde as liberdades são praticamente nulas e o melhor é nem se pensar em voz alta, não vá o diabo tecê-las. Um duro ditador, costuma-se dizer, governa com mão de ferro e coração de aço. E quem se atrever publicamente a chama-lo de palhaço sabe perfeitamente estar sujeito a ir parar à piolha em tempo nenhum. As liberdades de expressão e de protestar, dentre outras, são expressamente proibidas por sistemas repressivos de governos totalitários. Não faltam exemplos tristes de países presentemente submissos a essa oprimente tirania. Felizmente, ainda não é o caso destes todos poderosos Estados Unidos, onde a Liberdade teima em não limitar-se apenas a uma imóvel estátua.

O pior, nesta opulenta nação americana, é quando a liberdade de se protestar dá lugar à libertinagem selvagem dos oportunistas anarquistas que vem para a rua incendiar violência contra a lei, dando largas aos seus destrutivos objetivos de bruta burrice capaz de infligir dores incalculáveis. A quem é que não dói ver tanto do nosso mundo presentemente envolto em cruel sofrimento só porque o bom senso dos esforços diplomáticos vai cedendo às explosões bombásticas permitindo que demasiado sangue inocente continue a pagar injustamente as favas fritas pelos desumanos senhores donos disto quase tudo? Não começará o mal porventura, cá por casa, ainda bem longe dos complexos conflitos globais, nessa casmurra parvoíce de nos julgarmos sempre com toda a razão pelo nosso lado, preferindo andar para aí às turras verbais, uns contra os outros, sem vontade alguma de nos entendermos para bem comum?

Questões redundantes, teclas gastas, mordidelas prementes de serpentes teimosas em assediarem-me a mente com detestáveis pesadelos.

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