A greve que não existiu
Não se tratava de uma situação inusitada no processo administrativo do arquipélago. Até na contratação de um contínuo para uma escola primária era necessário o consentimento ministerial. Tinha sido assim com a Alda Catita, a Badela, esposa do Francisco Catita, residente ao cimo do Alto numa casa contígua à do Ricardo Ventura. O Catita tocava contrabaixo na filarmónica das Angústias. Ao irmão José, que não sabia ler música, fora-lhe entregue um trompete, que ele tocava de ouvido.
O Ventura, por sua vez, era um exímio violinista, condutor da Filarmónica Nova Artista Faialense, na Conceição. Mais tarde faria parte da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, na capital do império, como um dos seus primeiros violinistas.
O Medeirinhos voltou a reunir-se com os membros da direção do sindicato. Parecia muito preocupado. Pediu-lhes para que nada se fizesse de maneira suscetível de agravar a situação. O Dr. António Sebastião, médico, que ocupava as funções de presidente da Câmara, notificara Silva Peixoto de que o patronato solicitara ao capitão Barros Teixeira, comandante da Bateria Independente de Defesa de Costa Nº 1, para autorizar o emprego de soldados na descarga se os proletários não concordassem com as suas condições. Além de comandante militar do distrito, o capitão Teixeira era o oficial censor, a quem competia silenciar os jornais. A concordância do comandante militar da ilha seria, na opinião julgada prevalecente na sociedade hortense, e pessoas observando atentamente a situação no exterior, um indício de que as decisões que se tomavam naquele contencioso tinham origem “muito para além da ilha e dos Açores”.
Muita gente recorria ao Medeirinhos para lavrar papéis legais, como requerimentos e outros documentos semelhantes. Depois de assinados pelos requerentes, recebiam o reconhecimento notarial. Miópico, lia qualquer texto com o nariz quase tocando o papel. Possuía um conhecimento jurídico muito amplo, ao que se dizia, ainda que não fosse advogado. Era solicitador. Falava alemão, francês e inglês. O Medeirinhos comunicou ainda aos sindicalistas que o Delegado do Trabalho lhes pedia para manterem sigilo acerca das negociações em curso, de maneira que se assegurasse a ignorância dos factos aos membros do sindicato enquanto se defendiam os seus direitos ao mais alto nível nacional. O silêncio de ambas as partes perante o público projetaria ainda uma medida de civismo e respeito e de confiança na lei, opinara Silva Peixoto. O delegado não duvidava do resultado, mas era necessário proceder “com calma” de acordo com o precedente administrativo e jurídico. Para que os líderes dos estivadores se não preocupassem, o Medeirinhos pô-los ao corrente, em segredo, de que Silva Peixoto tomara o partido do sindicato e requerera ao ministério a autorização para indeferir a petição patronal.
Os trabalhistas falaram entre si por alguns minutos. Algumas décadas posteriores, residindo na Grande Boston, Manuel Leal ainda se recordava de frases proferidas pelos participantes. O secretário da direção fora encarregado de Informar depois o Medeirinhos de que os dirigentes sindicais não podiam garantir a confidencialidade que lhes pedia o delegado do Instituto Nacional do Trabalho, por quem sentiam genuíno respeito. Os sócios tinham o direito de saber o que se passava. Além disso, parte do que ocorria no litígio com o patronato circulava ns conversa de tabernas da cidade.
O Manuel Leal, mais conhecido por Manuel da Luísa, frequentara a chamada escola do professor António de Faria, nas Angústias, na qual fora seu colega José da Silva Peixoto. Quando o professor saía durante o tempo em que a escola ainda se encontrava a funcionar, ele encarregava o Manuel de ensinar os outros companheiros. O Manuel da Luísa fora o melhor aluno do professor Faria na sua classe. Por vezes, ao modo de graça e reconhecimento, Silva Peixoto dizia recordar-se de que o Manuel fora seu mestre. O Manuel, porém, não prosseguira a sua educação porque o pai decidira que um dos filhos não seria “doutor enquanto os outros fossem pescadores”.
Mestre José Goulart da Silva, o Charrinho, que mais tarde arcaria a presidência do sindicato, fora eleito então vogal da direção. Era ao mesmo tempo capataz da Bensaúde. A situação de conflito de interesse talvez tivesse preocupado alguns filiados, mas da integridade de Mestre José Charrinho ninguém duvidaria com justiça. Todavia, a direção entregou ao vogal substituto, Francisco Capitão Antigo, temporariamente, as funções do Charrinho. De apelido Leal, o Francisco era ainda primo do Manuel da Luísa. O pai nascera na freguesia picoense da Candelária.
Um filho do Capitão Antigo, Francisco, Frank-Sue Leal, vive na província de Ontário, no Canadá. Deslocou-se a Nova Bedford com a equipa do Angústias Atlético Clube em 1970. Quase cinquenta anos mais tarde ainda não concretizara esperança de visitar o Faial. Com a ajuda de um primo, o desditoso Viriato José Ferreira, residente em Cambridge, e o Manuel Lima, amigo e também jogador de futebol no Atlético, regularizou a sua permanência nos Estados Unidos. Fazia questão de dizer aos amigos que lhes devia a liberdade. Anos depois fixou residência naquele país.
(Continua numa próxima edição)