Arrumar o coração

 

Tal como arrumamos a casa para recebermos convidados, visitar os Açores, pela quinta vez, obrigou-me a arrumar o coração. Podia ser adepta do lema “Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz”, mas não. Pelo contrário. Volta! Quantas vezes forem as necessárias para espremeres toda a felicidade que esse lugar tem guardado para ti, como se estivesses a fazer o melhor sumo de laranja natural que alguma vez bebeste.
Em 2020, no dia 6 de setembro, depois de uma semana passada na ilha do Pico, registei, em tom de despedida, algumas importantes lições que retirei daqueles dias. No meio dessas anotações, encontrei perdida a reflexão “...não precisamos de desculpas para regressar aonde quer que seja. Sentir é a melhor das justificações.” E assim foi.
Três anos depois, planeei férias como nunca tinha feito. Sem rumo, nem companhia, tendo como única certeza as datas de chegada e de partida a que me tinha proposto inicialmente. Previ que fosse uma viagem solitária, e essa ideia deixou-me receosa nos dias que antecederam a partida. Tinha medo de me sentir sozinha, mesmo que tivesse sido esse o grande desafio que tinha abraçado a priori. Ainda assim, esta experiência tornou-se, inesperadamente, numa bonita aprendizagem. Aprendi que estar só abre a porta da companhia e da amizade, que de outra forma não poderia ser aberta, como se de uma chave única para um trinco exclusivo se tratasse.
Conheci o Sr. António Sousa através do meu amigo Henry Simões, logo no primeiro contacto que tive com a ilha de São Jorge. Apanhou-me de manhã, no aeroporto, 
e deixou-me num parque de campismo na Urzelina, ao fim do dia, mas só depois de já me ter mostrado meia ilha. Quando se despediu de mim, deixou-me à vontade para lhe ligar se precisasse de uma manta, caso fizesse frio durante a noite. Quanta delicadeza... 
Enquanto jantava, sozinha, em frente à tenda, com uma vista deslumbrante sobre o Oceano Atlântico e com o Pico como pano de fundo no horizonte, senti-me só. Voltei a ter medo, mas, desta vez, era um medo real. Tinha acabado de anoitecer, estava escuro e levantou-se o vento. O continente estava longe e o parque de campismo onde eu me encontrava praticamente deserto. Estar só naquela altura foi assustador e receei que não houvesse nada que eu pudesse fazer quanto a isso. Foi nesse momento, nesses instantes de isolamento, que me lembrei - se ficar mesmo frio e o meu coração arrefecer, pelo menos posso sempre ligar ao Sr. António e pedir-lhe uma manta para me aquecer. Nisto, emergiu-me uma agradável sensação de bem-estar e percebi que a minha ligação àquele lugar começava a estabelecer-se. Não precisei de nenhuma manta durante a noite porque, na verdade, a manta que eu precisava já a tinha comigo desde o momento em que o Sr. António e a sua família se tinham disponibilizado para me ajudar.
Nos dias que se seguiram, a família Sousa tratou de me dar a conhecer a sua terra, e foi assim que dei início a esta viagem, cujos receios iniciais rapidamente se desvaneceram. Durante o tempo que privei com eles, conheci-lhes a bondade e invadiu-me frequentemente um sentimento descomedido de gratidão por tudo o que faziam por mim. “A gente faz o que a gente pode, Catarina.” E para mim era sempre tanto, até que entender as nossas diferenças me permitiu compreender a relatividade dos nossos gestos. Mais tarde, acabei por compreender que não há, necessariamente, uma dívida associada ao verdadeiro ato de fazer o bem. A minha relação com cada um deles nasceu da vontade intrínseca e genuína de me quererem ajudar e bastaram-me apenas algumas horas para perceber que tinha à minha frente uma família rara. E como qualquer raridade, não as podemos deixar fugir. Se estes dias fossem mesmo um sumo de laranja delicioso, o contacto com São Jorge foi, definitivamente, um gomo sumarento desta história.
Visitei lugares bonitos, outros espetaculares. Dei a volta à ilha, conheci o Norte, o Sul e o Topo. Visitei fajãs até mais não e percorremos estradas que constantemente me lançavam difíceis dilemas – a melhor paisagem estaria à direita ou à esquerda? Aproveitar ao máximo as paisagens ou fechar os olhos e sentir o vento na cara? Fotografar ou apreciar? Perdi a conta das vacas que vi. Perdi a conta das vacas que fotografei. Provei queijo fresco com malagueta e logo eu, que dispenso picante. Comi ovos de peru e pus a cabeça debaixo de cascatas. Provei o sabor adocicado da Roca-da-velha. Ouvi histórias lindas, inspiradoras. Lugares de cortar a respiração, que me fizeram soltar um “ai se a minha mãe sonhasse...” A minha mãe não sonhava, até porque eu, na maior parte das vezes, também não fazia ideia daquilo que estava prestes a encontrar. Aventurei-me por caminhos íngremes, sem conhecer o que de lá viria. Ouvi repetidamente “E é isto…”, de forma singela, como se não estivesse constantemente a vislumbrar paisagens singulares e fenomenais diante dos meus olhos. Para os locais, cada recanto é um lugar comum, e, em lugares comuns, até podiam morar pessoas comuns, mas, como eu não sou local, nos lugares especiais que visitei não podiam senão morar pessoas excecionais. Aliás, que o diga o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, que escolheu o mesmo destino de férias que eu, e ainda tive o privilégio de o conhecer e cumprimentar, durante um passeio à Fajã de Santo Cristo.
A estadia no Pico trouxe-se à superfície memórias de uma semana feliz e mostrou-me que a felicidade se repete, se refaz, e se vive, novamente, sem que se esgote. 
Num dia, subi ao Pico e comi lapas cruas. Nos meus sonhos mais remotos não imaginaria esta combinação. Noutro dia, conduzi uma carrinha, um jeep e naveguei num barco. Comi pistachos em alto mar e nadei enjoada agarrada a uma boia, acreditando que a má-disposição podia passar. Andei à boleia (descalça!) e nadei em belíssimas piscinas naturais, rodeadas das típicas rochas negras de basalto. Apanhei sol. Repus e gastei energia. Voltei a repor. Tirei fotografias sem pressa. Desci uma caldeira vulcânica e deitei-me na sua base como se o mundo fosse meu. Vi estrelas e ouvi os cagarros. Comi peixe à farta, sem me fartar. Provei os melhores gelados tradicionais do Faial. Falei de filmes, de livros e das diferenças que distinguem a vida insular da vida continental. Fiz amigos! Aqueles para quem olhamos como se fossem família. E não é que se tornaram mesmo? Aprendi com pessoas que têm tanto para me ensinar. Tudo isto, naquela que seria uma viagem solitária! Eu queria dias de descanso e, para meu encanto, tive isso e muito mais. É com satisfação que constato - abrir os braços a experiências novas levou-me a sentir mais além. Saborear, caminhar, escutar e viver.
Era difícil escolher onde pousar a vista. A caminho da Madalena, se olhasse para trás, alcançava a cauda do crocodilo, a ponta ocidental de São Jorge. Se olhasse em frente, observava o Faial, sempre sincero, aproximando-se cada vez mais. Em todo o redor, o Pico sustenta-nos com firmeza, a mais jovem das ilhas açorianas. A cabeça pensa onde os pés pisam e, de pés na terra, eu estava no céu. O vento quente batia-me no rosto enquanto reparava que o azul intenso do mar facilmente se fundia com o azul sereno do céu. Separados por uma linha muito ténue, fizeram-me perceber que o céu é o limite porque à terra pertencemos. Afinal de contas, era nessa fusão que eu me encontrava.
Obrigada, Henry, por ousares partilhar tanto comigo. Por me receberes e ensinares. Por seres casa e abrires a porta da amizade. Que boa que é! É uma sorte poder aproveitar contigo conversas, silêncios e gargalhadas, sabendo que tudo é vivido no momento certo. Obrigada por me dares a conhecer os lugares, as pessoas, as experiências e o tempo de cada uma delas.
A vida tira-nos algumas coisas, mas também nos põe outras no caminho quando menos esperamos. Conheci um e outro sítio, conheci uma e outra pessoa. Locais e indivíduos que não esquecerei. Farei jus ao que dizia uma senhora em cima do palco, na minha última noite, na ilha Terceira: “Espero que saibam contar. É preciso somar as amizades, somar os amigos!” Bingo! De facto, encontrar paz num lugar pode ser revelador da realidade que vivemos na nossa própria morada. Por isso, se os Açores forem a laranja que estou a espremer para fazer o melhor sumo natural que já bebi, então desejo não ter espremido a fruta toda.

E porque nunca será demais, a todos os que fizeram destes dias momentos inesquecíveis, o meu muito obrigada!

 

• Catarina Matos