Cartas da América - O surpreendente livro do Pe. Xavier Madruga

 

 

O Núcleo Cultural da Horta acaba de editar a obra intitulada Cartas da América, onde estão reunidas as crónicas de viagem que o saudoso Pe. Xavier Madruga (1883-1971), das Lajes do Pico, redigiu no decorrer da sua longa viagem aos Estados Unidos, ocorrida entre Outubro de 1946 e Abril de 1948. Foram escritas nessa altura com o intuito de serem publicadas no jornal O Dever, do Pico, por ele fundado e dirigido desde 1917 até à sua morte, ocorrida há 50 anos. No decorrer desta sua jornada, estas cartas foram recebidas na sua terra natal por Ermelindo Ávila, editor deste jornal regional e seu compagnon de route nas lides jornalísticas, que as foi dando à publicidade, sendo muito apreciadas na época.
Este livro foi coordenado a duas mãos, pela Prof.ª Rosa Goulart, que assina a introdução, intitulada “No tempo em que ainda se escreviam cartas”, que é uma magistral lição de literatura, e por nós, que subscrevemos as notas finais, intituladas “Anotações de um destinatário imprevisto – Seguindo os passos da jornada americana do Pe. Xavier Madruga”, onde apresentamos uma série de dados pertinentes sobre o autor das Cartas da América e destas suas crónicas de viagem, entre as quais sublinhamos a triangulação de informação sobre a mesma, colhida n’O Dever, no Diário de Notícias de New Bedford, no Jornal Português de Oakland, e ainda nalguns jornais americanos da época.  
Como é que um madeirense se abalança a preparar uma obra deste tipo dum autor açoriano, deverá ser a pergunta que os leitores deverão estar a formular neste momento. Em resposta lhes direi que tomámos conhecimento destes textos pela primeira vez em 2018, no decorrer do Colóquio do Faial, pela voz da supramencionada docente da Universidade dos Açores, e desde logo nos voluntariámos para colaborar neste fascinante projecto editorial, dado que, no ano anterior havíamos publicado a antologia A Visão Madeirense da América (também apresentada em New Bedford nessa altura), onde reunimos diversos conjuntos de crónicas de viagem na América escritos por visitantes madeirenses, muitos dos quais padres da Diocese do Funchal, que haviam ido de visita aos seus familiares e amigos nos Estados Unidos ao longo do séc. XX.
Estando ainda no “activo” e com a responsabilidade da pastoreação de várias paróquias, estes sacerdotes madeirenses não se demoraram muito tempo na América, dado que em média apenas ficaram neste país durante um ou dois meses. O Pe. Xavier Madruga, pelo contrário, já estava numa espécie de “pré-reforma” das suas lides eclesiais, e por isso, com a devida autorição do seu Bispo, permaneceu nos Estados Unidos durante cerca dum ano e meio, no hiato temporal supra referido. 
Que América encontrou este ilustre lajense ao chegar a este país? Em 1946 os Estados Unidos estavam no pós-guerra, e as cicatrizes e memórias do conflito bélico ainda estavam muito presentes na psiche americana. Por outro lado notava-se já no ar os alvores da Guerra Fria, dado que a luta contra o comunismo estava ao rubro, e a Rússia já era vista como o novo inimigo. 
Nas suas longas deambulações pelos Estados Unidos o Pe. Xavier Madruga começou pela costa leste, e estabeleceu a sua base, digamos assim, na igreja de Nossa Senhora dos Anjos, em Fall River, onde se encontrava colocado o seu amigo, o Pe. Adriano Moniz. Dali partiu para as visitas às cidades circunvizinhas, onde se encontravam radicados importantes núcleos de açorianos, e New Bedford não foi excepção. Sendo um jornalista de apreciáveis predicados, foi levado a visitar a sede do Diário de Notícias, tendo sido convidado a colaborar no mesmo com algumas crónicas que espelhassem o seu olhar sobre a realidade americana. Teve assim início a rubrica “Do meu sentir”, que teve sempre honras de primeira página.
Contudo, o ilustre visitante não se demorou muito tempo na costa leste, dado que o seu objectivo era visitar o seu irmão, António Xavier Madruga, radicado em San Diego, assim como uma irmã que se encontrava a viver em Centerville, mais a norte. Devido a esta afinidade familiar, grande parte da sua estadia nos Estados Unidos foi passada na Califórnia. Fixada a sua segunda base em Point Loma, dali partiria depois para várias visitas a diversas cidades onde faria diversas missões em diversas igrejas portuguesas, tão em voga na altura, sobretudo nas cidades de San Francisco e de San Jose, entre outras deste vasto Estado. Sendo ele muito conhecido, cada vez que era anunciada a sua presença nalguma destas igrejas, quer nas suas solenidades principais, quer nestas missões, açorianos de várias cidades acorriam em grande número para nela participarem activamente, muitos deles vindos de muito longe.
Para os açorianos radicados nos Estados Unidos, a presença no seu seio dum padre ilustre vindo dos Açores, foi como se as ilhas tivessem ido ao seu encontro. E para muitos o Pe. Xavier Madruga, para além de lhes levar a luz da fé e da esperança, foi ainda o embaixador da saudade, a eterna companheira dos emigrantes. Nas suas deambulações pela América este visitante reencontrou antigos amigos de infância, que haviam emigrado muito jovens para este país, muitos dos quais ele já não via há 30 ou 40 anos, e esses reencontros foram muito emotivos para ele.
Observador arguto e perspicaz, este lajense foi registado tudo o que viu e sentiu, no decorrer desta sua longa viagem por este país, nas cartas que ia escrevendo e enviando para o seu jornal no Pico. De que tratam as suas Cartas da América, perguntarão alguns, ansiosamente. Saciando a curiosidade dos nossos leitores, levantaremos o véu sobre algumas temáticas nelas abordadas. Um fio condutor das mesmas é, indubitavelmente, a sua admiração pelo mundo novo que descobriu no novo mundo, ao que se segue o registo deveras importante de diversos aspectos das comunidades açorianas na América, para onde os emigrantes transpuseram diversos aspectos da sua cultura, das suas tradições e da sua fé.  Nas suas missivas encontramos ainda textos sobre a Igreja Católica na América, assim como o contributo dado por  diversos padres açorianos junto do seu rebanho ilhéu neste país, muitos dos quais pioneiros no levantamento de diversas igrejas, em diversas cidades, com a ajuda dos seus paroquianos. Deveras comovente é a descrição da visita que fez ao Cemitério de São João Baptista, em New Bedford, onde ajoelhou, rezou e chorou junto das campas rasas de muitos destes primeiros padres açorianos que deram tudo o que tinham e podiam pelas suas comunidades. Este sacerdote era um fiel devoto de Nossa Senhora de Fátima, cuja devoção estava a espalhar-se na América nessa altura, sobretudo junto das comunidades portuguesas. Aquando da sua permanência na Califórnia foi convidado a pregar o sermão da festa da bênção duma imagem desta invocação na cidade de Chico e, encontrando-se naquele distante Estado, foi convidado a deslocar-se a New Bedford, em Outubro de 1947, para pregar o sermão da festa da bênção da imagem da Senhora de Fátima, adquirida para a igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo. De modo a cumprir tal objectivo empreendeu uma épica viagem aérea, entre San Diego e Boston, tendo levado dois dias a atravessar a América duma ponta à outra, viajando em quatro aviões diferentes. Outros tempos…
Devido à riqueza temática desta obra, ora editada, que resgata do esquecimento estes importantes textos, escritos no decorrer desta memorável viagem, a mesma poderá ser entendida sob vários aspectos: um jornal de viagem, um registo histórico das comunidades açorianas na América – imprescindível para o seu estudo no presente – um catecismo, uma biografia de distintas personalidades, ou até um registo da política americana da época, campo no qual o Pe. Xavier Madruga mergulhou profundamente, ao contrário dos seus colegas madeirenses que apenas o referem ao de leve nos seus escritos. Em suma, nas suas cartas, o Pe. Xavier Madruga pretendeu dar a conhecer aos leitores d’O Dever, no Pico, uma visão global da América, a famosa terra de promissão, da qual muitos só haviam ouvido falar pelos seus parentes ali radicados.
Ao regressar aos Açores o Pe. Xavier Madruga foi aclamado pela qualidade das suas Cartas da América e foi convidado a realizar diversas conferências, em São Miguel, São Jorge, Faial e no Pico, onde deu a conhecer aos seus conterrâneos mais alguns aspectos do seu olhar sobre a realidade americana, prelecções essas que suscitaram imensa curiosidade e foram assistidas por grande número de pessoas ávidas por saberem, de viva voz, mais dados sobre a América.
Ao longo da sua vida este sacerdote publicou dois livros, reunindo crónicas de viagem, o intitulado “Dos Açores a Roma”, editado em 1925, narrando a viagem que empreendeu à Cidade Eterna, acompanhando uma peregrinação açoriana, para assistir à cerimónia de canonização de Santa Teresinha do Menino Jesus, e “Até ao Danúbio – Jornada de Fé e Cultura”, editado em 1938, onde reuniu as crónicas jornada que realizou até Budapeste, dois anos antes, de modo a assistir ao Congresso Eucarístico Internacional. Em vida foi por diversas vezes alvitrada a hipótese de se reunirem em livro as suas Cartas da América, mas tudo não passou dum desejo que ficou por realizar. Anos mais tarde o Núcleo Cultural da Horta assumiu a responsabilidade de as trazer a lume, mas a sua edição foi sendo protelada até ao presente, tendo visto a luz do dia em Dezembro do ano passado.
Recomendamos vivamente a leitura desta obra, que ao longo das suas mais de 300 páginas, reúne todas as suas interessantes Cartas da América. As mesmas surpreenderam os leitores açorianos no final da década de 40 e estamos certos que irão surpreender igualmente os leitores contemporâneos.
Ao longo do séc. XX poucos foram os escritores açorianos que publicaram livros com crónicas de viagem sobre os Estados Unidos, entre os quais se encontra Alfredo de Mesquita, pioneiro destas andanças, com o seu A América do Norte, editado em 1916 e reeditado diversas vezes a posteriori. A esse número restrito vem agora juntar-se, com todo o mérito, o Pe. Xavier Madruga, com as suas Cartas da América, publicadas postumamente, cuja capa se encontra ilustrada com uma antiga imagem de San Diego, a sua cidade preferida neste país.
Os eventuais interessados em adquirir um exemplar desta obra poderão contactar directamente o Núcleo Cultural da Horta através do site nch.pt ou do e-mail nchorta@hotmail.com . 
O preço de venda é de apenas 10 euros.

 

• Duarte M.B. Mendonça